quinta-feira, 5 de junho de 2008

A ARTE DE ESCREVER E A METAFÍSICA DO ESTILO: MACHADO DE ASSIS E ARTHUR SCHOPENHAUER

A proposta deste trabalho é pensar a arte de escrever a partir do conto de Machado de Assis, “O cônego ou metafísica do estilo”, dialogando com algumas reflexões de Arthur Schopenhauer no ensaio “Pensar por si mesmo”, da obra Parerga e Paralipomena. Pretende-se, com isso, investigar nos dois autores a possível convergência da experiência poética com a de pensamento. Em ambos emerge a criação como resultante do jogo dinâmico que envolve a prática de leitura dos livros e do mundo com o sombrio e vasto repertório de sensações íntimas guardadas.

Em “O cônego ou metafísica do estilo”, ao relatar os esforços do cônego Matias para a escrita de um sermão, o narrador discorre sobre a metafísica do estilo, tese que se traduz no entrecruzamento amoroso de substantivos e adjetivos. Tal consórcio, regido por Eros, é chamado no conto de “idílio psíquico”. A obra de Machado tem como princípio de composição a ironia, o que a torna, ao mesmo tempo, poética e crítica. O próprio narrador machadiano, com pretensões científicas e proféticas pouco modestas, ironiza a si mesmo:

Não me interrompas, leitor precipitado; sei que não acreditas em nada do que vou dizer. Di-lo-ei, contudo, a despeito de tua pouca fé, porque o dia da conversão pública há de chegar.

Nesse dia, – cuido que por volta de 2222, – o paradoxo despirá as asas para vestir a japona de uma verdade comum. Então essa página merecerá, mais do que favor, apoteose. Hão de traduzi-la em todas as línguas. As academias e institutos farão dela um pequeno livro, para uso dos séculos, papel de bronze, corte-dourado, letras de opala embutidas, e capa de prata fosca. Os governos decretarão que ela seja ensinada nos ginásios e liceus. As filosofias queimarão todas as doutrinas anteriores, ainda as mais definitivas, e abraçarão esta psicologia nova, verdadeira, e tudo estará acabado. Até lá passarei por tonto, como se vai ver (1998, 155).

O solitário protagonista do enredo do conto, cuja ação se confunde com a tese do proeminente narrador, é o cônego Matias, que se encontrava detido na composição de uma grande obra particular, “entre livros e livros” (p. 155). Foi quando aceitou a tarefa de escrever um sermão a ser lido numa festa. O narrador machadiano assim descreve a cena em que o cônego se põe a trabalhar a encomenda:

Começou de má vontade, mas no fim de alguns minutos já trabalhava com amor. A inspiração com os olhos do céu, e a meditação, com os olhos no chão, ficam a um e outro lado no espaldar da cadeira, dizendo ao ouvido do cônego mil coisas místicas e graves. Matias vai escrevendo, ora devagar, ora depressa. (...) De repente, indo escrever um adjetivo, suspende-se; escreve outro e risca-o; mais outro, que não tem melhor fortuna. Aqui é o centro do idílio (p. 156).

Após os primeiros instantes de descontentamento, Matias trabalha com prazer. Brincando, como havia sugerido um dos festeiros que lhe pediram o sermão. O narrador, então, convida o leitor a subir à cabeça do cônego e passa a expor seus conhecimentos “psico-léxico-lógicos”, acreditando piamente estar lançando as bases de uma nova psicologia. Dividindo a cabeça do clérigo em dois hemisférios, revela sua descoberta: substantivos nascem num hemisfério e adjetivos noutro. Para espanto de sua suposta leitora, o narrador afirma que as palavras não só possuem sexo, como também amam umas às outras e se casam. O substantivo, recém-escrito pelo cônego, agora suspira pelo adjetivo. No hemisfério oposto, da mesma forma, o adjetivo sonha o substantivo. O barulho das inúmeras idéias na cabeça do cônego impede que tais apelos sejam ouvidos por ambos. No entanto, há um impulso irresistível a guiá-los: a força de Eros. Não é um anseio erótico qualquer, mas o que se encontra em Psique, na alma que os envolve. O consórcio de Sílvio e Sílvia – substantivo e adjetivo – é um pacto eterno, um amor predestinado.

Postas essas considerações por parte do narrador, eis que o cônego, diante das dificuldades envolvidas durante sua escrita, levanta da cadeira e vai à janela para espairecer. Raios de sol o iluminam. Ele se distrai ao ver um papagaio e um pavão, se esquecendo por um momento de Sílvio e Sílvia. O narrador intervém:

Mas Sílvio e Sílvia é que se lembram de si. Enquanto o cônego cuida em cousas estranhas, eles prosseguem em busca um do outro, sem que ele saiba nem suspeite nada. Agora, porém, o caminho é escuro. Passamos da consciência para a inconsciência, onde se faz a elaboração confusa das idéias, onde as reminiscências dormem e cochilam. Aqui pulula a vida sem formas, os germens e os detritos, os rudimentos e os sedimentos; é o desvão imenso do espírito. Aqui caíram eles, à procura um do outro, chamando e suspirando (p. 158).

O narrador-psicólogo leva o leitor até esse “desvão imenso do espírito”. Ao se dirigir aos abismos da alma do cônego, examina suas regiões inconscientes, onde não há máscaras, apenas pensamento. Justamente onde Sílvio e Sílvia se encontram dispersos. Mundo tumultuado de “embriões e ruínas”, onde idéias, livros, objetos, memórias, vozes, cantigas, sensações e medos se amontoam, junto aos abismos morais e às dores universais que ambos ultrapassam com entusiasmo. Desejando-se ardentemente, os amantes encontram-se cada vez mais perto um do outro.

Diante da balbúrdia inconsciente da cabeça do cônego, evocamos aqui o anti-canônico ensaio “Pensar por si mesmo”, no qual Arthur Schopenhauer compara o pensamento a um fogo que precisa ser atiçado. Pensar é uma disposição interior que não depende unicamente dos conhecimentos adquiridos. Diz o filósofo: “Só é possível pensar com profundidade sobre o que se sabe, por isso se deve aprender algo; mas também só se sabe aquilo sobre o que se pensou com profundidade” (2005, 39). Pensar por si mesmo é seguir um impulso particular, em que estão envolvidos o ambiente e as lembranças. Tais circunstâncias sugerem proximidade com a matéria a ser pensada. Schopenhauer vê a erudição como nociva a esse movimento, pois quando se está com um livro às mãos o pensamento é obrigado a seguir uma determinação externa.

A distinção que Schopenhauer faz entre os eruditos e os pensadores é que os eruditos repetem as coisas escritas nos livros e os pensadores fazem a leitura do livro do mundo. O filósofo diz que apenas os pensamentos próprios têm vida. Pensar por si mesmo é como criar um ser vivo. Aquele que o faz não se extravia, está sempre no caminho certo. As leituras, por sua vez, podem conduzir a muitos enganos. O pensamento próprio é o mais valoroso, o mais firme e o mais seguro, o único capaz de fecundar o espírito, que o concebe com originalidade. Por outro lado, influências de pensamentos alheios obscurecem e desorganizam o espírito, a ponto de lhe tirarem a capacidade de discernimento e entendimento. Iletrados são inúmeras vezes mais sagazes no que pensam do que muitos dos que se debruçam sobre os livros. Enquanto os eruditos, ou “filósofos livrescos”, podem a qualquer momento realizar pesquisas ou recorrer a conhecimentos empíricos para corroborar suas teorias, os pensadores autônomos apenas aguardam que o pensamento amadureça e se forme por si mesmo. Contrapõe-se assim uma atitude voluntária e previsível a outra, natural e surpreendente.

Schopenhauer só recomenda a leitura quando a fonte dos pensamentos seca. Não é comum ser acometido por um pensamento original, daí ser razoável dedicar à leitura o tempo em que não se está propriamente pensando. Ela funcionará apenas como um substituto ou um alimento para o ato de pensar. O filósofo adverte, porém, que o excesso de leitura pode nublar a visão do mundo real. Clareza e resolução, assim como espontaneidade nos juízos, são os atributos de um pensamento autêntico. Pensar não é para se obter um bem alheio, como é comum entre os sofistas, e sim o modo de alcançar a felicidade. O filósofo crê que, por ser o homem um animal entre outros animais, não lhe é dado tão-somente pensar. Por isso, há necessidade de tolerância ao viver entre os ruídos do mundo. Assim como Machado de Assis faz em seu conto, Schopenhauer evoca o amor para tratar do pensamento:

A presença de um pensamento é como a presença de quem se ama. Achamos que nunca esqueceremos esse pensamento e que nunca seremos indiferentes à nossa amada. Só que longe dos olhos, longe do coração! O mais belo pensamento corre o perigo de ser irremediavelmente esquecido quando não é escrito, assim como a amada pode nos abandonar se não nos casamos com ela (2005, 52).

Quando inspirados pela força do Cântico dos cânticos, a “lábia erudita”, Sílvio e Sílvia se encontram na cabeça do cônego: eis que irrompe o pensamento poético regido por Eros. “Nisto, o cônego estremece. O rosto ilumina-se-lhe. A pena, cheia de comoção e respeito, completa o substantivo com o adjetivo” (p. 161). Entrelaçados, substantivo e adjetivo darão sentido ao que o cônego dirá em seu sermão, se por fim coligir os seus escritos, abençoando o conúbio de Sílvio e Sílvia.

Quais seriam as provisórias conclusões a partir do diálogo de idéias entre a prosa bem-humorada de Machado de Assis e o desafiante ensaio de Arthur Schopenhauer? Assim como o próprio narrador do conto machadiano tencionara, Friedrich Nietzsche, o pensador-poeta, um dia afirmou, em seu nome e em nome de todos os criadores, o desafio: “Conheço a minha sina. Um dia, meu nome estará ligado à lembrança de algo tremendo – de uma crise como jamais houve sobre a terra, da mais profunda colisão de consciências” (2004, 109). Afirmações como esta, de Nietzsche, do narrador do conto de Machado, ou mesmo a ferocidade crítica de Schopenhauer, se não se perderem na dimensão randômica da realidade, perdurarão como imagens a revolver o pensamento. O que permanece é fundado pelos poetas, disse certa vez Hölderlin.

Fundadores, Machado e Schopenhauer lançam as bases perenes de uma filosofia da criação poética e de um pensamento original. Machado de Assis o faz na forma de um conto narrado em permanente tensão irônica. Schopenhauer, por sua vez, num ensaio que se revela na contundência de suas afirmações polêmicas. Em ambos os casos, são encontrados subsídios para fomentar o pensamento em torno da arte de escrever. O que mais importa para o pensador e o poeta do que cosmogonias e revoluções? Sílvio encontrará Sílvia. O idílio de Eros e Psique, tão altivo no conhecido poema de Fernando Pessoa, sempre a desejar a eternidade do instante no sonho da existência.

Referências bibliográficas

MACHADO DE ASSIS. Várias histórias. Rio de Janeiro: Garnier, 1998.
NIETZSCHE, Friedrich. Ecce homo – como alguém se torna o que é. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
SCHOPENHAUER, Arthur. A arte de escrever. Tradução, organização, prefácio e notas de Pedro Sussekind. Porto Alegre: L&PM, 2005.


Publicado no livro Jornada Discente Machado de Assis - Melhores artigos (2009), organizado por Dau Bastos, do Centro de Letras e Artes da UFRJ.