A entrevista foi realizada na casa de João Antônio, na Praça Serzedelo Correia, em Copacabana, numa tarde ensolarada de 1992, na ocasião do lançamento do livro de contos Guardador. Vendida à agência de notícias carioca Ecabe Press, saiu publicada em vários jornais do país, dos quais infelizmente não obtive o retorno de nenhum exemplar. Guardei comigo apenas a fotocópia do trabalho original, batido a máquina de escrever a partir da transcrição de uma fita cassete. Recentemente mostrei seu conteúdo à pesquisadora Ieda Magri, colega de doutorado na UFRJ, que prepara uma tese em Literatura Brasileira sobre o escritor. No III Encontro João Antônio, ocorrido em outubro de 2008 na sede da Cooperativa de Artistas Autônomos, na Rua do Mercado, centro do Rio de Janeiro, incentivado pela própria Ieda, organizadora do evento, apresentei a entrevista a pesquisadores da obra de João Antônio e ao seleto círculo de seus admiradores. Com a sua nova publicação, agora em versão eletrônica, espero compartilhar outra vez com os leitores os breves e inesquecíveis momentos que passei conversando com o escritor.
Repórter: Você pode falar sobre o seu livro, Guardador?
João Antônio: O Guardador é um livro em que eu continuo trabalhando as minhas geografias, tanto físicas quanto humanas. Sempre eu me preocupo com um tipo de homem que aparentemente é anônimo, mas com uma importância muito grande até como síntese de uma sociedade. O conto título, “Guardador”, se passa aqui na Praça Serzedelo Correia, também conhecida como “praça dos paraíbas”, ou “dos paus-de-arara”. Aliás, ela só é Serzedelo Correia na placa. O guardador dorme no oco de uma árvore, uma velha figueira. O conto é dedicado ao Cartola, mestre da Mangueira, o grande poeta, com quem eu convivi durante muitos anos no tempo do Zicartola, que era na rua da Carioca. Isso aconteceu por volta de 65, quando o Rio de Janeiro estava completando 400 janeiros. A geografia abrangida no livro vai do norte do Paraná, volta ao Rio, passa por outras regiões, e chega até Minas Gerais, onde eu relato uma partida de futebol entre o Cruzeiro e o Atlético, no Mineirão. A minha preocupação nesse livro continua sendo a de outros livros: o popular. Trabalho com o popular num nível de preocupação estética e humana e o Guardador é isso.
Repórter: Você passou por todos os lugares que aparecem no livro?
João Antônio: Claro, ninguém pode escrever, por exemplo, um conto sobre Atlético e Cruzeiro se não tiver visto esse encontro. Ninguém pode imaginar um conto como o “Tuareg”, que se passa no norte do Paraná, fronteira com o Paraguai, sem ter passado por lá. Eu conheço aquela região, vivi lá, trabalhei lá e em boa parte do Brasil. O Brasil, da Ilha de Marajó até o Rio Grande do Sul, na fronteira com Argentina e Uruguai, eu conheço. Eu trabalhei em vários lugares, na Bahia, no Paraná, no Rio Grande, e em outros estados. Viajei muito como repórter da revista Realidade. Depois, como escritor, fui bastante convidado para viajar, não só no Brasil como no exterior. Morei em vários países: Holanda, Alemanha, Portugal... Conheci os países do bloco socialista antes da derrubada do muro. O livro é isto: o resultado de uma vivência. Eu sou o tipo de escritor que vivencia as coisas sobre as quais escreve.
Repórter: O livro é dedicado ao escritor Lima Barreto. Por quê?
João Antônio: Em 1970, há mais de 20 anos, eu resolvi ler e estudar Lima Barreto. Concluí que se tratava não apenas de um dos maiores escritores do Brasil. Ele, além de escritor, foi homem de pensamento. É impossível hoje você escrever uma história da inteligência brasileira sem passar pela figura de Lima Barreto. Todos os grandes problemas brasileiros já estavam expostos na sua obra, como, por exemplo, a questão fundiária. Eu tenho por Lima Barreto não só uma admiração, mas um dever de gratidão por ele ter me aberto os olhos para uma porção de coisas sobre a natureza deste país. É um escritor muito forte, o maior romancista da chamada República Velha. Um escritor que sempre contrariou o estabelecimento, uma figura muito autônoma e independente. Ele foi um dos primeiros negros assumidos na história do país. Morreu aos 41 anos sem dinheiro para o enterro, foi ajudado por amigos. Deixou 17 livros. Eu tento de uma maneira ou de outra reverenciá-lo, dedico todos os meus livros a ele.
Repórter: Como você está vendo a situação atual do Brasil, com tanta corrupção envolvendo o governo?
João Antônio: Vejo uma situação muito complicada, um momento contraditório em que se expõe mais uma vez que a grande falência do Brasil está nas elites e numa classe política muito fraca, incompetente para resolver os problemas. O momento é de uma profunda necessidade de reflexão. Há uma luta violentíssima pelo poder e eu espero que mais uma vez a ultradireita não esteja dando um golpe num presidente, que nem é de esquerda. É preciso ver o que tem por trás disso com profundidade. Como sempre, a política no Brasil é exercida como uma artimanha. Estamos precisando de políticos. Os nossos políticos não são bons e é aí que está o problema: não temos estadistas. Estamos pagando muito caro também pela longa ditadura de vinte e tantos anos. Nós desconhecemos os caminhos da democracia, que é uma hipótese muito difícil. Eu gostaria que o mundo todo fosse verdadeiramente democrático, mas é muito árduo. A democracia dá um trabalho brutal. Sem querer fazer blague, o amor é muito bom e a democracia muito boa. O amor, como a democracia, dá muito trabalho. Ambos exigem muito investimento, principalmente de caráter e de afeto. Democracia é um investimento de amor. Não pense ninguém que ela pode ser estabelecida através de golpes, muambas ou corrupções. A hipótese democrática é muito séria, é preciso que as pessoas trabalhem muito, estejam muito vigilantes, participantes de tudo, e isso não é fácil, principalmente num país como o Brasil, onde as pessoas estão despolitizadas. Foram muitos anos sem o exercício do voto e votar só se aprende votando.
Repórter: Você sempre trabalhou como jornalista. Pode falar um pouco de sua trajetória na imprensa?
João Antônio: Eu fiz parte de equipes de vanguarda. No JB, na década de 60, fiz jornalismo diário e matérias como “A Lapa fica acordada para morrer”. Fiz matérias que chamaram atenção, todas assinadas. Na equipe da Realidade, uma revista considerada a maior da América do Sul, publicada na década de 60, trabalhei com o Walter Firmo, fotógrafo famoso. Viajamos juntos e fizemos várias matérias. Eu tive uma grande presença no jornalismo, fiz o primeiro conto-reportagem do jornalismo brasileiro, na Realidade, “Um dia no cais”, sobre a vida do cais do porto de Santos. Ganhei prêmios, um deles com a reportagem “Este homem não brinca em serviço”, sobre o mundo dos sinuqueiros, um submundo. Depois veio o AI-5, a situação piorou muito, e a revista praticamente acabou, foi impedida de continuar da maneira como ela era. Eu voltei para o Rio e fiz parte de algumas equipes. Fui da Manchete, de O Globo, trabalhei na Rio Gráfica Editora, peguei a última fase do Diário de Notícias. Com Hamílton de Almeida e Milton Severiano da Silva, entre outros, fui para o norte do Paraná. Fizemos em Londrina o jornal Panorama. Voltei ao Rio e fui editor do Livro de cabeceira do homem, da Civilização Brasileira, e depois caí numa espécie de imprensa alternativa. Pertenci ao Pasquim, Movimento, Opinião, Ovelha Negra, Bicho, todos esses alternativos. Em 1975 eu criei uma expressão que se tornou comum e hoje é citada: imprensa nanica. Foi no Pasquim, onde trabalhei durante uns dois anos. Eu tenho feito jornalismo a vida inteira, de um jeito ou de outro. Hoje colaboro com um monte de jornais, o JB, o Jornal da Tarde, de São Paulo, e de vez de quando o Estado de São Paulo. Nunca consegui me desvencilhar totalmente do jornalismo, é uma profissão que eu gosto muito. Acho que tem possibilidades incríveis.
Repórter: Você escreve muito sobre o povo. Você é de origem humilde?
João Antônio: Eu saí do Morro da Geada. É uma favela de São Paulo, no bairro do Jaguari, quase na periferia, na zona oeste. Essas coisas que se passam nos meus escritos, contos, novelas, são histórias que me cansei de ver, praticar, viver... Tenho uma atração muito grande pelo que é do povo. São pessoas de grande qualidade e, ao mesmo tempo, com grandes sofrimentos. Eu só gosto dessa gente. O popular me chama, me atrai muito. Gosto muito da música popular. Escrevi um livro sobre Noel Rosa, que considero extraordinário. A minha formação passa muito pela música popular, por figuras fortes como Aracy de Almeida, Carlos Cachaça, Dorival Caymmi, Nelson Cavaquinho, de quem fui amigo durante 20 anos, Cartola, Paulinho da Viola e outros mestres do passado, como Assis Valente, Adoniran Barbosa. Enfim, eu vejo na contribuição dessa gente uma coisa desdobrável, é uma seiva muito rica. Ataulfo Alves, Lamartine, Lupicínio, Mário Lago, Herivelto, e há outros valores ainda. Esses músicos e poetas populares conseguiram apreender a verdadeira alma nacional. Eu vejo meu sentir muito ligado a eles. Eu aprendo muito com outras artes também. Na minha formação entra o cinema, vi muitos filmes em cinematecas e cineclubes, fui amigo pessoal de Glauber Rocha e escrevi vários artigos sobre ele. O cinema japonês, o sueco, o Neo-realismo italiano, esses cinemas me ensinaram muito sobre composição. Meu aprendizado foi feito também com fotografia e pintura, tenho formação mista.
Repórter: Por que você escolheu Copacabana para morar?
João Antônio: Não tem explicação. Copacabana é a maior síntese brasileira. É a síntese das sínteses brasileiras. O lugar menos provinciano do mundo. Copacabana é menos provinciano do que Berlim. É tão cosmopolita quanto Londres ou Paris. É um dos maiores bairros do mundo, um bairro-cidade. Eu abro as minhas cartas com Copacabana. Quando Copa vai mal, o Brasil inteiro vai mal. Copacabana é a grande exportadora de moda, de costumes, aqui se mistura tudo. Em Copacabana tudo é muito natural. Aqui se consegue viver democraticamente, apesar de toda miséria, violência, barulho, confusão, apesar de tudo. Não existe nenhum lugar onde haja uma mistura de tantos valores ao mesmo tempo. Nada é novidade em Copacabana, se alguém disser que agora ali passou na praia um pavão misterioso ou um burro que voa, eu digo: “Bem, já que Copacabana existe, muita coisa lhe é permitida”. Isto aqui é um território mágico, onde muita coisa pode acontecer.
Publicado no Portal Literal.
http://www.literal.com.br/acervodoportal/entrevista-com-joao-antonio-2790/
segunda-feira, 17 de novembro de 2008
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