terça-feira, 30 de junho de 2009

UMA ÉTICA DA COMPOSIÇÃO EM TROVAR CLARO, DE PAULO HENRIQUES BRITTO


Paulo Henriques Britto, que além de poeta é contista, professor de literatura e renomado tradutor, em Trovar claro (1997), quando especula sobre o fazer poético, fala do lugar mesmo da poesia. A metalinguagem nos seus versos atua como princípio de realização. Se o poeta testemunha o seu próprio ofício enquanto o realiza, para além do como se faz, perguntamos: o que é desse ofício?

A resposta provisória a essa questão, lida a partir de alguns de seus poemas, recai numa ética da composição, ética aqui entendida como a ethos dos antigos gregos, que significa o hábito, o costume de fazer algo de uma determinada maneira, a ação prática realizada de acordo com o modo de ser mais próprio do homem. Com isso deixamos de lado o uso posterior do termo, que repousa num significado moral.

Na série de poemas que abre o livro, “As três peças circenses”, são protagonistas três artistas de circo: o prestidigitador, o encantador de serpentes e o funâmbulo. Cada um deles, em suas possibilidades, é a metáfora do poeta.

Este papel que se oferece virgem
ao bel-prazer da pena e tinta
é todo teu, só teu, como não é,
nem nunca foi, a tua vida.
[...]
E se esta página inaugural
negar-te a façanha de um verso,
um gesto rápido há de restaurar
a virgindade do caderno (p. 11).

A técnica da prestidigitação é feita de truques que dependem da rapidez e da agilidade das mãos. Diante do papel, preso ao seu caderno, em seu ofício, o poeta atua como um prestidigitador, um manipulador de palavras. Poemas nascem encantados como números de mágica. O ilusionista é o mágico que sabe esconder, escamotear e fingir. O poeta, por sua vez, é o fingidor que concede ao leitor não a ilusão do sentido, mas a própria realidade, ainda mais viva e fulgurante. Fingir é verbo que deriva do latim fingere, que quer dizer “modelar na argila”, “dar forma a qualquer substância plástica, esculpir”, também “dar feição a, afeiçoar”, e, por extensão, “reproduzir os traços de (algo), representar, imaginar, fingir, inventar” (Houaiss, 2001). A modelagem do fingir conduz às mãos. O poeta, o ser que escreve versos, adere a uma psicologia concreta das mãos escreventes.

Para. Volta atrás. Faz do palimpsesto
papel vulgar. Agora continua,
retoma a doce flauta da literatura (p. 13).

O gesto inclui a tentativa e o erro. O gozo das palavras é vertigem vital da escrita. A partir da vida que se esvai, eis que o poeta toma posse de sua matéria. O instrumento que atende ao movimento de suas mãos, a seu bel-prazer derrama a tinta no papel. A folha branca de seu caderno lhe é receptiva.

Encantar serpentes é a tarefa do poeta. São ideias insidiosas, traiçoeiras, enganadoras, que se insinuam. Sugestões veladas que se dão a entender. Claros enigmas de poesia. Pensamentos poéticos que se infiltram no texto, e que conduzem a outros textos, mais vivos e verdadeiros. A palavra vibra ao som da doce flauta da literatura. O texto da vida é de uma verdade singular, mesmo que esguia e peçonhenta. Quem é a serpente? A realidade, o poeta ou a poesia?

Entre a palavra e a coisa
o salto sobre o nada.
Em torno da palavra

Muitas camadas de sonho (p. 15).

E o que dizer do funâmbulo? O equilibrista que vive do risco mortal de sua profissão é como o poeta. No desafio de equilibrar-se nas linhas tênues de sua escrita, o poeta segue nomeando as coisas do mundo. O ato de nomear é um arriscar-se destemido que desafia o vazio. Salta-se sobre o nada como se dançasse diante da fugidia existência. As mãos bailam ao escrever o canto. A carne dança. A alma é bailarina e o poema a acompanha.

Há um dentro do corpo da palavra escolhida: o seu núcleo. A essa palavra, Paulo Henriques Britto associa a imagem cotidiana de uma cebola. Cortamos a cebola para nos alimentarmos e nesse ato prosaico choramos sem tristeza. A faca que corta é tensa e necessária. Em torno da cebola as camadas do sonho. No seu interior, o cerne da palavra. Camadas se despem, sonhos morrem. Resta o íntimo. O átomo. A essencialidade da matéria existente. A palavra precisa da poesia.

E nessa trajetória inesperada
a carne faz-se verbo em cada esquina
resolve-se completa em tinta e sílaba
em súbitas lufadas de sentido (p. 19).

Nos “Sete estudos para mão esquerda”, Paulo Henriques Britto aprofunda a relação entre o poetar do poeta, a matéria a ser trabalhada – a palavra – e o sentido da poesia. A palavra poética se vê desmistificada nos seus versos. Pertence ao cotidiano das ruas. Ser o que ela é decorre do sentido próprio da poesia. A consciência relê o mundo e o poema no afã de querer saber a (inútil) explicação das coisas.

Na provisória e efêmera segurança diante do rumo incerto dos acontecimentos, algo atravessa o poeta. Ele vê e sente, e pensa. Nada lhe devolve o ato de ser, aqui e agora. O instante poético é como uma rajada de vento, impetuosa, que subitamente se autoilumina. Estampidos luminosos acordam o ser para a inevitável melodia do real. No entanto, frente ao esplendor da realidade a poesia corre perigo. O espetáculo que acontece diariamente aos sentidos pode se tornar para o poeta tão somente um acúmulo de escritos. Em desencanto, a pedra se desfaz. O lirismo se desconstrói em pedaços. A escrita torna-se enganosa. O desejo, indecifrável.

A coisa parece fácil:
o fora em torno do dentro
o alto em cima do baixo.

Mas essa ordem serena
é coisa dura e avessa,
uma máquina perversa (p. 25).

Paulo Henriques Britto realiza um movimento bipolar em seus versos. O próprio título do livro possui dois significados complementares. Trovar claro diz sobre o próprio trovar em sua nitidez composicional e também sobre o possível antagonismo entre o sentido do cantar do trovador e a clareza conceitual da linguagem. No logos dos versos de Britto, a razão é suspensa em sua presunção imperial e dá lugar ao poema. Na voz que pertence ao poeta soa a música que canta o seu devir mais íntimo.

Na duplicidade entre o cantar e o pensar está o estranhamento da palavra. O poeta se mascara – apolíneo – ao se revelar na consciência do escritor. O monólogo interno de Britto é um sinuoso questionamento. A construção de uma verdade visceral e totalizadora se retrai diante da possibilidade do poema. Substitui-se a ordem explicativa do mundo pela desfaçatez da vontade. O mundo instaurado pela poesia é o de uma vontade crua. O que nele se acha é o que se procura. Encontra-se o que quer que seja. A busca não cessa. Não há trégua aos olhos do poeta. Portando um ar de suspensão e suspeita de seu próprio método, ele segue desfiando o seu novelo de linhas, artesanal, a sua teia elaborada, a entretecer o sentido. Suas mãos, abissais, são capazes de gestos antinaturais.

O mundo segue opaco,
imune à consciência e seus lampejos,
de lógica, sua falta de tato,
sua avidez, seus deuses e desejos (p. 29).

No centro da poesia de Paulo Henriques Britto há o embate de forças contrárias. Enquanto a consciência almeja proclamar engrenagens perfeitas em sua complacência, a linguagem do mundo segue fragmentária. Abarca o erro, a falha humana, o caos, o desencaixe, o desajuste. A linguagem do mundo costuma andar distante dos esquadros cônscios da razão. Augusto Massi diz, na orelha de Trovar claro, que

"o poeta busca ideias de ordem diante do desconcerto do mundo, mas, impregnado por certa subjetividade, franqueia a experiência intelectual aos momentos de intimidade. O racionalista em desassossego quer enterrar seus defuntos mais familiares e desmascarar o impostor no espelho da identidade".

No mirar-se especulativo do poeta, os opostos – arte e razão – lutam para se equilibrar. A consciência se quer límpida, clarividente, mas a realidade desafia o puro cantar. Escreve-se muito nesse mundo, vasto mundo de Raimundos. “Rabisco, logo existo” (p. 26), ironiza Paulo Henriques Britto frente à insistente repetição do refrão racional sonhado por Descartes. O mesmo Britto canta, em “Idílio”:

Um sonho, musculoso e maternal,
um sonho quer purificar o mundo.

Desejo de formas claras e puras,
de nitidezes simples, minerais,
certezas retilíneas como agulhas.

Nada de nebuloso, frouxo ou úmido
há de turvar o brilho do cristal
de uma razão sem jaça e sem nervuras,
sem óleos malcheirosos e carnais.

O sonho, sorridente e diurnal,
espargirá sobre um túmulo de dúvidas
flores estritamente artificiais,
entre diagonais e ângulos agudos.

O sonho quer estrangular o mundo (p. 77).

Qual é o cristal que perdura na verdade humana? O sonho musculoso e maternal da razão? O mesmo (e velho) sonho que para pacificar o mundo o estrangula? Se por um lado as flores das certezas regulares, deveras artificiais, enfeitam os túmulos de uma vã sabedoria, por outro, os vivazes caminhos do mundo independem da consciência dominadora e de seus matemáticos lampejos de lógica. Sobra o poema, a solução difícil. Nele há o homem humano, a sua existência, o seu modo de ser, o seu universo particular, o seu espernear. Paulo Henriques Britto aconselha em verso: “Cuidado, poeta, o tempo engorda a alma” (p. 121). Num suscitar de sílabas cabe um destino.

Na ética de Paulo Henriques Britto não há a forma perdida alhures, atemporal, a ser cristalizada, encontrada, mas a forma atingida, assim como João Cabral de Melo Neto a vislumbrou. Surdo às deusas, o poeta é um artífice. Atua como um domador de circo. Precisa domar as feras, as palavras, que seguem vivas no espetáculo do mundo. Algumas são eleitas. Seu trabalho é fruto de seleções e escolhas. O sumo que permanece, condensado, é o verbo essencial. O verso nítido e preciso, cabralino. Diz Britto: “Cuidado: todo silêncio é pouco” (p. 121). Só é comum ao leitor o que sobrou no final, e isso lhe é tudo.

Referências bibliográficas

BRITTO, Paulo Henriques. Trovar claro. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
HOUAISS, Instituto Antônio. Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa.
Versão 1.0. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. CD-ROM.

Publicado na revista do Fórum de Literatura Brasileira Contemporânea (UFRJ).