segunda-feira, 17 de novembro de 2008

ENTREVISTA COM JOÃO ANTÔNIO

A entrevista foi realizada na casa de João Antônio, na Praça Serzedelo Correia, em Copacabana, numa tarde ensolarada de 1992, na ocasião do lançamento do livro de contos Guardador. Vendida à agência de notícias carioca Ecabe Press, saiu publicada em vários jornais do país, dos quais infelizmente não obtive o retorno de nenhum exemplar. Guardei comigo apenas a fotocópia do trabalho original, batido a máquina de escrever a partir da transcrição de uma fita cassete. Recentemente mostrei seu conteúdo à pesquisadora Ieda Magri, colega de doutorado na UFRJ, que prepara uma tese em Literatura Brasileira sobre o escritor. No III Encontro João Antônio, ocorrido em outubro de 2008 na sede da Cooperativa de Artistas Autônomos, na Rua do Mercado, centro do Rio de Janeiro, incentivado pela própria Ieda, organizadora do evento, apresentei a entrevista a pesquisadores da obra de João Antônio e ao seleto círculo de seus admiradores. Com a sua nova publicação, agora em versão eletrônica, espero compartilhar outra vez com os leitores os breves e inesquecíveis momentos que passei conversando com o escritor.

Repórter: Você pode falar sobre o seu livro, Guardador?

João Antônio: O Guardador é um livro em que eu continuo trabalhando as minhas geografias, tanto físicas quanto humanas. Sempre eu me preocupo com um tipo de homem que aparentemente é anônimo, mas com uma importância muito grande até como síntese de uma sociedade. O conto título, “Guardador”, se passa aqui na Praça Serzedelo Correia, também conhecida como “praça dos paraíbas”, ou “dos paus-de-arara”. Aliás, ela só é Serzedelo Correia na placa. O guardador dorme no oco de uma árvore, uma velha figueira. O conto é dedicado ao Cartola, mestre da Mangueira, o grande poeta, com quem eu convivi durante muitos anos no tempo do Zicartola, que era na rua da Carioca. Isso aconteceu por volta de 65, quando o Rio de Janeiro estava completando 400 janeiros. A geografia abrangida no livro vai do norte do Paraná, volta ao Rio, passa por outras regiões, e chega até Minas Gerais, onde eu relato uma partida de futebol entre o Cruzeiro e o Atlético, no Mineirão. A minha preocupação nesse livro continua sendo a de outros livros: o popular. Trabalho com o popular num nível de preocupação estética e humana e o Guardador é isso.

Repórter: Você passou por todos os lugares que aparecem no livro?

João Antônio: Claro, ninguém pode escrever, por exemplo, um conto sobre Atlético e Cruzeiro se não tiver visto esse encontro. Ninguém pode imaginar um conto como o “Tuareg”, que se passa no norte do Paraná, fronteira com o Paraguai, sem ter passado por lá. Eu conheço aquela região, vivi lá, trabalhei lá e em boa parte do Brasil. O Brasil, da Ilha de Marajó até o Rio Grande do Sul, na fronteira com Argentina e Uruguai, eu conheço. Eu trabalhei em vários lugares, na Bahia, no Paraná, no Rio Grande, e em outros estados. Viajei muito como repórter da revista Realidade. Depois, como escritor, fui bastante convidado para viajar, não só no Brasil como no exterior. Morei em vários países: Holanda, Alemanha, Portugal... Conheci os países do bloco socialista antes da derrubada do muro. O livro é isto: o resultado de uma vivência. Eu sou o tipo de escritor que vivencia as coisas sobre as quais escreve.

Repórter: O livro é dedicado ao escritor Lima Barreto. Por quê?

João Antônio: Em 1970, há mais de 20 anos, eu resolvi ler e estudar Lima Barreto. Concluí que se tratava não apenas de um dos maiores escritores do Brasil. Ele, além de escritor, foi homem de pensamento. É impossível hoje você escrever uma história da inteligência brasileira sem passar pela figura de Lima Barreto. Todos os grandes problemas brasileiros já estavam expostos na sua obra, como, por exemplo, a questão fundiária. Eu tenho por Lima Barreto não só uma admiração, mas um dever de gratidão por ele ter me aberto os olhos para uma porção de coisas sobre a natureza deste país. É um escritor muito forte, o maior romancista da chamada República Velha. Um escritor que sempre contrariou o estabelecimento, uma figura muito autônoma e independente. Ele foi um dos primeiros negros assumidos na história do país. Morreu aos 41 anos sem dinheiro para o enterro, foi ajudado por amigos. Deixou 17 livros. Eu tento de uma maneira ou de outra reverenciá-lo, dedico todos os meus livros a ele.

Repórter: Como você está vendo a situação atual do Brasil, com tanta corrupção envolvendo o governo?

João Antônio: Vejo uma situação muito complicada, um momento contraditório em que se expõe mais uma vez que a grande falência do Brasil está nas elites e numa classe política muito fraca, incompetente para resolver os problemas. O momento é de uma profunda necessidade de reflexão. Há uma luta violentíssima pelo poder e eu espero que mais uma vez a ultradireita não esteja dando um golpe num presidente, que nem é de esquerda. É preciso ver o que tem por trás disso com profundidade. Como sempre, a política no Brasil é exercida como uma artimanha. Estamos precisando de políticos. Os nossos políticos não são bons e é aí que está o problema: não temos estadistas. Estamos pagando muito caro também pela longa ditadura de vinte e tantos anos. Nós desconhecemos os caminhos da democracia, que é uma hipótese muito difícil. Eu gostaria que o mundo todo fosse verdadeiramente democrático, mas é muito árduo. A democracia dá um trabalho brutal. Sem querer fazer blague, o amor é muito bom e a democracia muito boa. O amor, como a democracia, dá muito trabalho. Ambos exigem muito investimento, principalmente de caráter e de afeto. Democracia é um investimento de amor. Não pense ninguém que ela pode ser estabelecida através de golpes, muambas ou corrupções. A hipótese democrática é muito séria, é preciso que as pessoas trabalhem muito, estejam muito vigilantes, participantes de tudo, e isso não é fácil, principalmente num país como o Brasil, onde as pessoas estão despolitizadas. Foram muitos anos sem o exercício do voto e votar só se aprende votando.

Repórter: Você sempre trabalhou como jornalista. Pode falar um pouco de sua trajetória na imprensa?

João Antônio: Eu fiz parte de equipes de vanguarda. No JB, na década de 60, fiz jornalismo diário e matérias como “A Lapa fica acordada para morrer”. Fiz matérias que chamaram atenção, todas assinadas. Na equipe da Realidade, uma revista considerada a maior da América do Sul, publicada na década de 60, trabalhei com o Walter Firmo, fotógrafo famoso. Viajamos juntos e fizemos várias matérias. Eu tive uma grande presença no jornalismo, fiz o primeiro conto-reportagem do jornalismo brasileiro, na Realidade, “Um dia no cais”, sobre a vida do cais do porto de Santos. Ganhei prêmios, um deles com a reportagem “Este homem não brinca em serviço”, sobre o mundo dos sinuqueiros, um submundo. Depois veio o AI-5, a situação piorou muito, e a revista praticamente acabou, foi impedida de continuar da maneira como ela era. Eu voltei para o Rio e fiz parte de algumas equipes. Fui da Manchete, de O Globo, trabalhei na Rio Gráfica Editora, peguei a última fase do Diário de Notícias. Com Hamílton de Almeida e Milton Severiano da Silva, entre outros, fui para o norte do Paraná. Fizemos em Londrina o jornal Panorama. Voltei ao Rio e fui editor do Livro de cabeceira do homem, da Civilização Brasileira, e depois caí numa espécie de imprensa alternativa. Pertenci ao Pasquim, Movimento, Opinião, Ovelha Negra, Bicho, todos esses alternativos. Em 1975 eu criei uma expressão que se tornou comum e hoje é citada: imprensa nanica. Foi no Pasquim, onde trabalhei durante uns dois anos. Eu tenho feito jornalismo a vida inteira, de um jeito ou de outro. Hoje colaboro com um monte de jornais, o JB, o Jornal da Tarde, de São Paulo, e de vez de quando o Estado de São Paulo. Nunca consegui me desvencilhar totalmente do jornalismo, é uma profissão que eu gosto muito. Acho que tem possibilidades incríveis.

Repórter: Você escreve muito sobre o povo. Você é de origem humilde?

João Antônio: Eu saí do Morro da Geada. É uma favela de São Paulo, no bairro do Jaguari, quase na periferia, na zona oeste. Essas coisas que se passam nos meus escritos, contos, novelas, são histórias que me cansei de ver, praticar, viver... Tenho uma atração muito grande pelo que é do povo. São pessoas de grande qualidade e, ao mesmo tempo, com grandes sofrimentos. Eu só gosto dessa gente. O popular me chama, me atrai muito. Gosto muito da música popular. Escrevi um livro sobre Noel Rosa, que considero extraordinário. A minha formação passa muito pela música popular, por figuras fortes como Aracy de Almeida, Carlos Cachaça, Dorival Caymmi, Nelson Cavaquinho, de quem fui amigo durante 20 anos, Cartola, Paulinho da Viola e outros mestres do passado, como Assis Valente, Adoniran Barbosa. Enfim, eu vejo na contribuição dessa gente uma coisa desdobrável, é uma seiva muito rica. Ataulfo Alves, Lamartine, Lupicínio, Mário Lago, Herivelto, e há outros valores ainda. Esses músicos e poetas populares conseguiram apreender a verdadeira alma nacional. Eu vejo meu sentir muito ligado a eles. Eu aprendo muito com outras artes também. Na minha formação entra o cinema, vi muitos filmes em cinematecas e cineclubes, fui amigo pessoal de Glauber Rocha e escrevi vários artigos sobre ele. O cinema japonês, o sueco, o Neo-realismo italiano, esses cinemas me ensinaram muito sobre composição. Meu aprendizado foi feito também com fotografia e pintura, tenho formação mista.

Repórter: Por que você escolheu Copacabana para morar?

João Antônio: Não tem explicação. Copacabana é a maior síntese brasileira. É a síntese das sínteses brasileiras. O lugar menos provinciano do mundo. Copacabana é menos provinciano do que Berlim. É tão cosmopolita quanto Londres ou Paris. É um dos maiores bairros do mundo, um bairro-cidade. Eu abro as minhas cartas com Copacabana. Quando Copa vai mal, o Brasil inteiro vai mal. Copacabana é a grande exportadora de moda, de costumes, aqui se mistura tudo. Em Copacabana tudo é muito natural. Aqui se consegue viver democraticamente, apesar de toda miséria, violência, barulho, confusão, apesar de tudo. Não existe nenhum lugar onde haja uma mistura de tantos valores ao mesmo tempo. Nada é novidade em Copacabana, se alguém disser que agora ali passou na praia um pavão misterioso ou um burro que voa, eu digo: “Bem, já que Copacabana existe, muita coisa lhe é permitida”. Isto aqui é um território mágico, onde muita coisa pode acontecer.

Publicado no Portal Literal.

http://www.literal.com.br/acervodoportal/entrevista-com-joao-antonio-2790/

sexta-feira, 15 de agosto de 2008

GASTON BACHELARD E A IMAGINAÇÃO MATERIAL E DINÂMICA

A obra de Gaston Bachelard é conhecida por apontar para duas direções. A que se porta em sinergia diante das conquistas da Física no século XX intenciona fundar um novo espírito científico. Fulgura aí a eminência de uma pedagogia inaudita da razão, a que constitui a face diurna de seus escritos. A outra, chamada de obra noturna, dedica sua atenção à imaginação. Desse lugar é que se dá o diálogo aberto de seu pensamento com a literatura. Bachelard, ao suscitar as imagens literais produzidas pela imaginação material e dinâmica, se coloca em permanente contato com as obras literárias, especialmente a poesia. O filósofo, em suas asserções, apresenta uma teoria poética que aponta para a legitimidade dos devaneios da matéria.

No pensamento de Bachelard, a revolução da imaginação material e dinâmica se opõe à imaginação formal, herdeira da tradição metafísica e bem adequada aos artifícios da linguagem lógico-matemática. A imaginação formal, centrada no sentido da visão, resulta num exercício constante de abstração. A simplificação psicológica, a desmaterialização e a intangibilidade são algumas de suas características. O homem nesse domínio atua como um mero espectador do mundo que o rodeia. Sua contemplação é ociosa e passiva. O contrário desse formalismo vem a ser a imaginação material e dinâmica, na qual o homem é um ativo interventor da matéria. Sua ação é a de um demiurgo, um artesão, um manipulador, e o seu mundo se converte numa constante provocação concreta e concretizante. Bachelard contrapõe à consagrada filosofia passiva da visão uma filosofia ativa das mãos, a que pertence aos artistas, aos alquimistas, aos obreiros e a todos os que enfrentam a matéria para transformá-la.

A tradição formalista de pensamento, que se ancora no privilégio do olhar sobre os demais sentidos, opta pela análise de cópias e representações da realidade. Ao se distanciar da realidade concreta, o formalismo negligencia os aspectos materiais da vontade humana. Contrapondo à contemplação ociosa dessa vertente, na qual os eventos são apenas espetáculos para a visão, Bachelard aponta para uma imaginação que se alimenta de uma vontade transformadora da matéria. A imaginação material e dinâmica, em consonância com a vontade de criar, reporta diretamente à influência do pensamento de Friedrich Nietzsche. Vontade de poder é vontade de criar. Manipular. Transformar. Modificar a matéria. A imaginação material e dinâmica, ao lidar com essas forças ativas, se encontra num permanente corpo-a-corpo com as substâncias do mundo. Sua atitude frente às coisas concretas é operante.

No pensamento de Bachelard, a filosofia ativa das mãos trabalhadoras substitui a uma filosofia passiva da arte, desenvolvida desde o pensamento platônico-aristotélico. Ao invés da inatividade do corpo, a compor o esteio formalista da tradição metafísica, Bachelard aponta para um dualismo energético que se dá entre as mãos e a matéria. As mãos operantes, que o pensamento originário de Anaxágoras outrora mencionara, são instrumentos da vontade de poder do artista. A mão artesã é a mão que trabalha e cria. Mão que está a serviço de forças felizes. Mão do trabalhador-artista, onde a arte é associada à liberdade. Escreveu Bachelard:

"A mão ociosa e acariciante que percorre as linhas bem feitas, que inspeciona um trabalho concluído, pode se encantar com uma geometria fácil. Ela conduz à filosofia de um filósofo que vê o trabalhador trabalhar. No reino da estética, essa visualização do trabalho concluído conduz naturalmente à supremacia da imaginação formal. Ao contrário, a mão trabalhadora e imperiosa aprende a dinamogenia essencial do real, ao trabalhar uma matéria que, ao mesmo tempo, resiste e cede como uma carne amante e rebelde" (BACHELARD, 2002, p. 14).

Qual seria essa dinamogenia essencial do real? Bachelard mergulhou no estudo das quatro substâncias primordiais, reveladas na antiga Grécia por Empédocles, ou os quatro elementos: o fogo, a água, o ar e a terra. Imagens primitivas que substanciam o que há de material e dinâmico no mundo. Imagens que traduzem temperamentos artísticos, poéticos e filosóficos.Os quatro elementos da natureza são vistos na sua obra como sentimentos humanos primitivos, realidades orgânicas primordiais e temperamentos oníricos fundamentais. Para o pensador há uma carência de estudos que tratam da materialidade na arte. Há que serem notados os devaneios materiais que antecedem à contemplação estética.

O pensamento objetivo da ciência tradicional não permite maravilhar-se. Sua postura tende a ser irônica. Preserva o divórcio com o objeto escolhido. Em A psicanálise do fogo, Bachelard propõe que os devaneios substituam os procedimentos da ciência do mesmo modo que poemas são capazes de substituir teoremas. O filósofo adere à sedução da primeira escolha ao rejeitar a distância da objetividade científica. Bachelard mostra que o fogo é um objeto imediato. Tem valor fenomenológico ao atuar numa zona objetiva impura, onde intuições pessoais e experiências científicas se confundem. Bachelard recusa o plano histórico para falar do fogo, pois “[...] as condições antigas do devaneio não são eliminadas pela formação científica contemporânea” (BACHELARD, 1994, p. 5). Seu foco é a secreta permanência de uma idolatria. A psicanálise do fogo é a das condições subjetivas relacionadas aos conhecimentos do fenômeno. Os próprios cientistas, quando respondem sobre o que é o fogo, recorrem a um repertório de imagens primitivas. As experiências, a partir daí, são íntimas e afetivas. Nessa atividade fenomenológica são postas em suspensão noções de totalidade, de evolução, de sistema e de desenvolvimento.

Em A água e os sonhos, Bachelard vê a água como um elemento transitório, ligado a um tipo de destino que se metamorfoseia incessantemente. “O ser ligado à água é um ser em vertigem. Morre a cada minuto, alguma coisa de sua substância desmorona constantemente” (BACHELARD, 2002, p. 7), escreveu. O filósofo discorre sobre as superficiais águas claras e brilhantes, as águas vivas, que renascem a partir de si mesmas, e as águas amorosas. A água é o elemento das misturas. Junto à terra, se transforma em massa a ser modelada. Traduz experiências de fluidez e maleabilidade. Tem caráter feminino e de maternidade. Mas também irrompe violentamente nas ondas do mar em seus constantes fluxos e refluxos. Quase todos os exemplos que compõem A água e os sonhos são tirados da poesia das águas. Para Bachelard, a água é uma realidade poética completa.

Uma ação imaginante, aberta em permanente mobilidade criativa, é proposta central de O ar e os sonhos. A imaginação aérea a deformar as imagens fornecidas pela percepção, libertando-as das primeiras impressões, é capaz de mudar substancialmente suas formas. Imaginação sedutora, fecunda e vitalizante. Palavras que inauguram novos vôos psíquicos. Desejos de alteridade, de duplo sentido. A imanência do imaginário realiza-se num convite à viagem. Trajeto que conduz aos domínios imaginativos das profecias e utopias. Escreveu Bachelard: “Cada objeto contemplado, cada grande nome murmurado é o ponto de partida de um sonho e de um verso, é um movimento lingüístico criador” (BACHELARD, 2001a, p. 5). A poética do ar ultrapassa o pensamento. Produz metáforas. Fascina pelas imagens que realizam irrealidades num dinamismo revelador. Movimento aéreo que libera. Psicologia ascensional a produzir alívio e alegria em sua leveza e ligeireza. Tonicidade da palavra. Verticalidade. Para o alto: júbilo, amplificação do sentido. Para baixo: a queda moral. O pesar das palavras: descensão catabática. O ar é o elemento que age diretamente ligado à imaginação poética na linguagem.

As imagens que o elemento terra suscita ocorrem em torno de dois signos. A extroversão diz respeito aos devaneios ativos que agem sobre a matéria e a introversão traduz as imagens sugeridas pela intimidade. São pólos dialéticos que sugerem um duplo movimento. Tal ambivalência é demonstrada por Bachelard em um díptico que, ao mesmo tempo, une e separa idéias de trabalho e repouso. O pensador dividiu em dois volumes sua obra destinada às imagens da terra: A terra e os devaneios da vontade e A terra e os devaneios do repouso.

A terra traz dificuldades e paradoxos sem fim para as teses da imaginação material e dinâmica ao oferecer uma forma manifesta que se faz evidente. No entanto, a esse bem ver, que se quer realista, complementa-se paradoxalmente um bem sonhar. Além da imagem percebida está a imagem criada. Sua reprodução se apóia na memória. Torna-se, ao mesmo tempo, uma função do realizado, do irreal e do que ainda está por realizar-se. A imaginação, em seu caráter primitivo, atende aos devaneios da vontade. Se antecipa ao realismo petrificante na aventura dinâmica da percepção de uma nova forma. A constatação empírica se apóia num forjamento criativo. As imagens formadas derivam de sublimações de arquétipos inconscientes. Os devaneios decorrem de uma imaginação ativista, onde uma “[...] vontade que sonha e que, ao sonhar, dá um futuro à ação” (BACHELARD, 1990, p. 1). Na dupla realidade da imagem, física e psíquica, dá-se a união do imaginado com o imaginante. O homo faber é o modelador, o fundidor, o ferreiro, o que pratica uma atividade de oposição à matéria, configurando-a.

A esse contra, resultante da vontade, opõe-se um dentro, que alude ao repouso. A matéria imaginada torna-se imediatamente a imagem de uma intimidade. As afetividades inconscientes convergem para o centro terrestre. As potências subterrâneas aparecem em involução como ideais de repouso. A terra e os devaneios do repouso diz sobre a beleza íntima da matéria; sua massa de atrativos ocultos; o espaço afetivo que há no interior das coisas; a sua concentração material; e o conflito ou a tranqüilidade que aí reside. São evocadas as imagens de refúgio. A casa, o ventre e a gruta, que sinalizam uma profundidade tranquila ao homem. Por outro lado, as imagens que sugerem o movimento interior são angustiantes, caso do labirinto, da serpente e da raiz. O livro traz também um estudo sobre o vinho e a vinha dos alquimistas, onde é proposto um devaneio das essências intimas.

Sendo um ledor, atestando a sua própria competência para a leitura, Bachelard, ao tratar da imaginação material e dinâmica, assevera sua opção fenomenológica pela literatura. O privilégio de seus estudos recai nas imagens novas, deixando de lado as imitações inoportunas. A tradição poética suplanta a mimética no interesse de suas pesquisas. As imagens que provocam novidades são as que presentificam experiências com a linguagem, onde a ação da imaginação criadora sobressai. O ímpeto literário de sua época é visto como uma explosão da linguagem, fruto da interdependência ativa entre imaginação e vontade. O pensamento de Bachelard é regido por fascinações. Diz o filósofo que “[...] a linguagem poética, quando traduz imagens materiais, é um verdadeiro encantamento de energia” (BACHELARD, 2001b, p. 6). Ao se deter no estudo de suas convicções poéticas, Bachelard afirmou estar exercendo uma filosofia da imagem literária.

O instante poético é supervalorizado no pensamento de Bachelard na sua crítica à horizontalidade contínua do bergsonismo. Segundo o pensador, o tempo acontece em uma verticalidade instantânea, sendo dividido em instantes absolutos. Tais instantes se mostram como eventos de linguagem. Apreender o poético é experimentá-lo no instante de sua eclosão. No ensaio Instante poético e instante metafísico, o pensador sentencia:

"A poesia é uma metafísica instantânea. Num curto poema deve dar uma visão de universo e o segredo de uma alma, ao mesmo tempo um ser e objetos. Se simplesmente segue o tempo da vida, é menos do que a vida; somente pode ser mais do que a vida se imobilizar a vida, vivendo em seu lugar a dialética das alegrias e dos pesares. Ela é então o princípio de uma simultaneidade essencial, na qual o ser mais disperso, mais desunido, conquista unidade" (BACHELARD, 1986, p. 183).

Para Bachelard, a poesia recusa caminhos pré-estabelecidos. Ela possui uma felicidade própria e única. Sua imagem é a de uma doação. A solidão feliz e imediata é o prazer do poético. Seu tempo é vertical, um tempo detido. O pensador diz que o instante poético é uma relação harmônica que une elementos contrários. Com o aflorar de um dinamismo específico em sua ordem interna, abriga a ambivalência de ser e não-ser. Resulta numa simultaneidade sensível de eventos. Unidade de luz e sombra que compreende toques, perfumes, cores e sons.

Contrários ao estado instantâneo de poesia, em que a imaginação material e dinâmica é forjada, estão todas as possíveis explicações causais e retroativas em torno da imagem poética. Há em Bachelard uma inversão da crítica literária regida pela contemplação e pelo distanciamento em relação às obras. Nas suas formulações a respeito das imagens literárias, o pensador não almeja explicar o presente pelo passado e sim compreender o passado pelo presente. O sentido de seu pensamento se harmoniza com a perspectiva hermenêutica empenhada em propor novos horizontes de interpretação dos textos literários. Requer uma leitura aberta ao futuro. Bachelard não limita o corpo de seu pensamento num sistema fechado. Em vez de buscar afirmações definitivas, está sempre procurando abrir mão do recurso da retificação. O devaneio constitui-se na sua obra como método e liberdade.

Nosso plano aqui, a partir da leitura atenta dos prefácios e introduções de alguns de seus livros, consistiu em trazer algumas considerações sobre a proeminência de uma pedagogia da imaginação material e dinâmica como abertura a procedimentos originais na realização de novos estudos literários. Trabalhos que venham a se caracterizar pelo ineditismo da criação e não pela repetição de fórmulas consagradas e gastas.

Sem querer delimitar precisamente algo que se possa chamar de um procedimento bachelardiano, tentamos formular algumas poucas e possíveis afirmações provisórias a respeito do pensamento de Gaston Bachelard para os assuntos de nosso interesse, os que concernem às estratégias interpretativas, especialmente as que, de um modo ou de outro, venham a se identificar com uma poética. Retomando as provocações desse importante pensador nos lançamos no nosso próprio caminho, buscando, a partir de sua atualização, fornecer novas respostas às questões que tratam da interpretação dos textos literários.

BIBLIOGRAFIA:

BACHELARD, Gaston. A água e os sonhos – Ensaio sobre a imaginação da matéria. Tradução de Antonio de Pádua Danesi. São Paulo, Martins Fontes, 2002.
-------------------------- O ar e os sonhos – Ensaio sobre a imaginação do movimento. Tradução de Antonio de Pádua Danesi. São Paulo, Martins Fontes, 2001a.
-------------------------- A psicanálise do fogo. Tradução de Paulo Neves. São Paulo, Martins Fontes, 1994.
-------------------------- A terra e os devaneios da vontade – Ensaio sobre a imaginação das forças. Tradução de Maria Ermantina Galvão. São Paulo, Martins Fontes, 2001b.
-------------------------- A terra e os devaneios do repouso – Ensaios sobre as imagens da intimidade. Tradução de Paulo Neves da Silva. São Paulo, Martins Fontes, 1990.
-------------------------- O direito de sonhar. Tradução de José Américo Motta Pessanha, Jacqueline Raas, Maria Lucia de Carvalho Monteiro e Maria Isabel Raposo. São Paulo, DIFEL, 1986.


Publicado nos anais do XI Congresso internacional da Abralic, realizado na USP em 2008.

sexta-feira, 8 de agosto de 2008

NEM MEDALHÕES NEM ERUDITOS: DIÁLOGOS ENTRE MACHADO DE ASSIS E ARTHUR SHOPENHAUER

No conto “Teoria do Medalhão”, de Machado de Assis , há um receituário para a formação de um homem medíocre. Um pai aconselha seu filho, quando esse atinge a maioridade, sobre a importância de se tornar um medalhão, visando o bom e lucrativo convívio na sociedade. Para isto, é preciso que ele pense sempre o já pensado, use frases feitas e locuções convencionais, atrofie a imaginação, se abstenha da reflexão, decore o mais recente jargão científico e não tenha idéias próprias. Dialogar essas e outras “virtudes” do medalhão do conto de Machado com as ácidas considerações de Arthur Schopenhauer sobre a erudição e os eruditos de sua época, expostas em dois ensaios, “Sobre a erudição e os eruditos” e “Pensar por si mesmo”, ambos pertencentes à obra Parerga e Paralipomena, é a tarefa desse trabalho. Estará em jogo aqui um inaudito trânsito de pensamento entre os textos propostos e não o possível fato de Machado de Assis ter lido e recebido alguma influência das idéias de Schopenhauer. O debate fomentado não se ateará na causalidade de uma contextualização epocal dos autores, mas sim nas ressonâncias concretas que os escritos de ambos possam provocar a partir de sua atualidade.

“Teoria do Medalhão” consiste em um diálogo entre um pai e um filho. O recurso formal utilizado nos evoca a obra de Platão, onde Sócrates se dirige aos mais jovens para expor suas teses. Em ambos os autores a encenação de um diálogo que se destina a transmitir conhecimentos. No conto de Machado, a partir de seu tom humorístico, o texto assume ares de paródia. A maiêutica socrática não lhe ocorre. A palavra do pai é a tônica, age como se fosse um narrador na primeira pessoa a expor incansavelmente suas teses. O silêncio respeitoso e as breves interrupções do filho apenas sublinham o seu discurso.

A designação teoria, que substantiva o título do conto, remete a uma tradição de pensamento que desde a antiga Grécia é cultuada pelo ocidente. Trata-se da preponderância do olhar e, principalmente, de um determinado tipo de relação que o sentido da visão exerce sobre as coisas existentes. Ensina o filósofo Gerd Bornhein que o verbo theorein, que para os gregos significava uma das formas de ver , deriva de theoros, ser espectador, e a teoria aparece como “um ver concentrado e repetido, um ver que sabe ver, que inventa meios para cada vez mais ver melhor” (Bornhein, 1988, p. 89). Já o termo medalhão se aplica a um indivíduo importante, alguém que se destaca a partir de sua projeção profissional. A palavra possui sentido ambíguo. Conforme os méritos do medalhão, pode ou não ser usada como um termo pejorativo. No conto, regido pelo princípio da ironia, o seu significado é bem delimitado pelo discurso do pai. A teoria do medalhão é, portanto, um olhar aguçado sobre a constituição do que seja um medalhão a partir de sua prática vivencial na sociedade machadiana.

As palavras do pai sinalizam um rito de passagem, pois o filho está prestes a atingir a maioridade. O trânsito de gerações é visto com esperança. O que não fora realizado pelo pai poderá vir a ser executado pelo filho. O que os une é a perspectiva da gravidade atingida com a idade madura. Não a do espírito, mas a do corpo. São os inevitáveis sinais da natureza. Transformar-se num medalhão é, portanto, tarefa que se projeta na aurora da mocidade para que os seus benefícios possam ser desfrutados na maturidade. Sucesso é a palavra chave para tal empresa. Afirma o pai, a projetar no filho os seus próprios anseios não alcançados: “meu desejo é que te faças grande ou ilustre, ou pelo menos notável, que te levantes acima da obscuridade comum” (MACHADO, 1999, p. 74).

Alguns procedimentos se fazem absolutamente necessários para a composição da figura distintiva do medalhão. Concerne a esse ofício que o postulante não tenha idéias próprias para não precisar escondê-las. Melhor mesmo é se valer de gestos corretos e perfilados para comunicar simpatias ou antipatias sobre os assuntos triviais do cotidiano. Para que isso ocorra é necessário um bom manejar do discurso. “Sentenças latinas, ditos históricos, versos célebres, brocados jurídicos, máximas, é de bom aviso trazê-los contigo para os discursos de sobremesa, de felicitação e de agradecimento” (MACHADO, 1999, p. 78), aconselha o pai. Essas seriam fórmulas que desobrigariam os ouvintes a se esforçarem em busca de um entendimento mais profundo do que se diz. É preciso fundamentalmente aceitar o que foi posto e consagrado, pois “o método de interrogar os próprios mestres e oficiais da ciência, nos seus livros, estudos e memórias, além de tedioso e cansativo, traz o perigo de inocular idéias novas, e é radicalmente falso” (MACHADO, 1999, p. 79). Para se livrar de idéias originais que irrompem à mente com espontaneidade é preciso ler compêndios de retórica e ouvir determinados discursos. A solidão é prejudicial por ser uma oficina de idéias. Convêm juntar-se aos pasmatórios para compartilhar com eles numa saudável monotonia as mesmas opiniões. O polemos deve ser evitado a todo custo. O intelecto há de ser reduzido à sobriedade para permanecer flutuando na inércia do equilíbrio comum. O medalhão nunca deve usar a imaginação. Perigoso chegar a conclusões que não tenham sido achadas por outros, pois a reflexão e a originalidade, atributos de quem pensa com autonomia, são nocivas ao ofício do medalhão.

No ensaio “Pensar por si mesmo”, Arthur Schopenhauer diz que quem pensa por si mesmo segue o seu próprio impulso e não teme pensar algo que seja paradoxal. Sabe esperar pelo entendimento para amadurecer suas reflexões. Convive tranquilamente com a diversidade de pontos de vista. A melhor maneira de não ter pensamentos próprios é estar sempre com um livro às mãos. Ler demais é conveniente a quem quer desaprender a pensar.

Num outro ensaio seu, “Sobre a erudição e os eruditos”, Schopenhauer faz uma crítica demolidora aos eruditos alemães de sua época. Suas palavras têm como alvo um determinado tipo de profissional que sempre povoou as academias. O pensador diz que esses eruditos carecem de pensamentos próprios pelo excesso de tempo em que se dedicam avidamente à leitura. Sob o afluxo contínuo de pensamentos alheios colhidos nos livros, essas pessoas se conformam na dimensão restrita da informação. Schopenhauer difere a informação da instrução, sendo a primeira supérflua e substituível. No máximo, sua importância consistiria em ser um mero instrumento para se chegar à instrução. Os que se movem nos parâmetros limitados da informação se alimentam tão somente dos juízos que estão em voga. Pensar por si mesmo e instruir-se são ações que não se conformam em adaptar-se às correntes de pensamento vigentes, pois quem persegue a autenticidade dos pensamentos próprios carece de se importar com os dos outros. Os pensamentos alheios que circulam entre os eruditos referidos por Schopenhauer funcionam apenas como um adorno que pode ser trocado conforme o seu uso. São superficialidades que nunca se enraízam.

Schopenhauer faz um elogio aos diletantes, os que conservam o amor nas coisas que empreendem. Para os diletantes, os assuntos tratados têm um fim em si mesmo, ao contrário dos profissionais das mais diversas áreas, em que tais assuntos se constituem apenas num meio para a obtenção de interesses estranhos. Ao se cercarem de suas tarefas com extrema avidez, os profissionais escoram-se no argumento de que necessitam trabalhar para se sustentar. Schopenhauer afirma que as grandes descobertas e obras que a humanidade se reconhece e cultua foram feitas por diletantes e não por esses profissionais especializados. Diz o pensador que a diferença fundamental que se dá entre os diletantes e os profissionais é que os diletantes vivem para uma matéria enquanto os profissionais vivem de uma matéria. Quando Schopenhauer faz uma crítica feroz à postura dos eruditos, profissionais do conhecimento, parece estar evocando a imagem do medalhão do conto machadiano:

"As atividades de torcer, enroscar, acomodar-se e renegar suas convicções, ensinar e escrever coisas em que na verdade não acredita, rastejar, adular, tomar partidos e fazer camaradagens, levar em consideração ministros, gente importante, colegas, estudantes, livreiros, críticos, em resumo, qualquer coisa é melhor do que dizer a verdade e contribuir para o trabalho dos outros – são esses o seu procedimento e o seu método" (SCHOPENHAUER, 2005, p. 27).

Os eruditos mencionados por Schopenhauer fazem suas tarefas buscando apenas benefícios próprios. Almejam o poder somente para si mesmo. Querem apenas desfrutar do reconhecimento de seus pares. Do mesmo modo, no conto de Machado, em que a publicidade é a alma do negócio, o pai recomenda ao filho que as atividades do medalhão devem ser sempre noticiadas à imprensa. O que hoje é chamado de uma boa imagem e serve bem à política de interesses mesquinhos é fundamental para o medalhão, assim como o aparente sentimento de família, um bom círculo de amizades e a estima pública. O pai apresenta sua teoria: “A publicidade é uma dama loureira e senhoril, que tu deves requestar à força de pequenos mimos, confeitos, almofadinhas, coisas miúdas, que antes exprimem a constância do afeto do que o atrevimento e a ambição” (MACHADO, 1999, p. 79). Notícias geram notícias, diz o pai:

"Longe de inventar um tratado científico da criação de carneiros, compra um carneiro e dá-o aos amigos sob a forma de um jantar, cuja notícia não pode ser indiferente aos seus concidadãos. Uma notícia traz outra; cinco, dez, vinte vezes põe o teu nome ante aos olhos do mundo!" (MACHADO, 1999, p. 79).

Ao freqüentar festas, ocasiões especiais, ou participar de comissões e irmandades, o medalhão é um “ornamento indispensável, de figura obrigada, de rótulo” (MACHADO, 1999, p. 82). O curso de suas atividades não exclui outras que o medalhão possa vir a ter, inclusive as profissionais e políticas. Se possível, é de bom alvitre ocupar a tribuna do parlamento e convocar a atenção pública, mostrando-se aos holofotes. Ser o adjetivo dessas ocasiões é que importa. Afirma o pai que o adjetivo é a alma do idioma, a sua porção idealista e metafísica, enquanto o substantivo é a realidade nua e crua, o naturalismo do vocabulário. Nos discursos a serem proferidos pelo medalhão, o recurso da metafísica deve ser sempre utilizado. Pois as coisas que podem ser comprovadas na realidade, os chamados “negócios miúdos” exigiriam do medalhão conhecimentos supérfluos aos seus interesses. Diz o pai:

"Um discurso de metafísica política apaixona naturalmente os partidos e o público, chama os apartes e as respostas. E depois não obrigar a pensar e descobrir. Nesse ramo dos conhecimentos tudo está achado, formulado, rotulado, encaixotado; é só provar os alforjes da memória" (MACHADO, 1999, p. 82).

O valor dos ensinamentos do pai se dá na medida em que o funcionamento da sociedade acolhe esse tipo de conduta própria ao medalhão. Seu discurso se baseia em dados empíricos . Provém de um olhar aguçado a respeito dos movimentos do convívio social do qual participa. Ao afirmar que a vida é uma grande loteria, o pai define a estratégia correta para que o filho possa não só adentrar o jogo com circunspecção como também estar acima dele, manipulando-o. O pai se mostra como a voz da sabedoria, acumulada pela experiência do tempo. Como ele mesmo diz, seu repertório de considerações se equivale ao livro O Príncipe, de Maquiavel. O ofício de medalhão, assim como as recomendações maquiavélicas, exige a disciplina própria de uma arte. No fim, se bem executado o empreendimento, o ofício garantirá não só ao filho, mas também ao pai, um rol de virtudes para uma rentável teia de relações sociais.

A ironia, tão presente em todo o corpo da obra de Machado de Assis, que segundo o pai é “feição própria dos cépticos e desabusados” (MACHADO, 1999, p. 83), é desaconselhada e deve ser substituída pela chalaça. Essa se adapta melhor ao ofício. Rir com leviandade convém ao medalhão. Tragédia ou comédia humana? Pensemos. Evitamos até agora comparar o medalhão com as nem tão risíveis figuras públicas que povoam os noticiários desde a época de Machado até os dias de hoje. Preferível por hora mantê-las onde estão. Tampouco com as distorções causadas pela institucionalização de uma sociedade do conhecimento fundamentada pelas práticas mercantilistas de nosso tempo. Deixaremos tudo isso em aberto para que seja revisto por cada um de nós, livremente, desde já, com a evocação do conto de Machado e as considerações de Schopenhauer trazidas aqui.


BIBLIOGRAFIA

BORNHEIN, Gerd. As metamorfoses do olhar. In: O olhar. Organização: Adauto Novaes. São Paulo, Companhia das Letras, 1988.
MACHADO de Assis. Papéis Avulsos. Rio de Janeiro, Livraria Garnier, 1999.
SCHOPENHAUER, Arthur. A arte de escrever. Tradução, organização, prefácio e notas de Pedro Sussekind. Porto Alegre, L&PM Editores, 2005.

Publicado no CD dos anais do I Seminário Machado de Assis, realizado na UERJ em 2008.

quinta-feira, 5 de junho de 2008

A ARTE DE ESCREVER E A METAFÍSICA DO ESTILO: MACHADO DE ASSIS E ARTHUR SCHOPENHAUER

A proposta deste trabalho é pensar a arte de escrever a partir do conto de Machado de Assis, “O cônego ou metafísica do estilo”, dialogando com algumas reflexões de Arthur Schopenhauer no ensaio “Pensar por si mesmo”, da obra Parerga e Paralipomena. Pretende-se, com isso, investigar nos dois autores a possível convergência da experiência poética com a de pensamento. Em ambos emerge a criação como resultante do jogo dinâmico que envolve a prática de leitura dos livros e do mundo com o sombrio e vasto repertório de sensações íntimas guardadas.

Em “O cônego ou metafísica do estilo”, ao relatar os esforços do cônego Matias para a escrita de um sermão, o narrador discorre sobre a metafísica do estilo, tese que se traduz no entrecruzamento amoroso de substantivos e adjetivos. Tal consórcio, regido por Eros, é chamado no conto de “idílio psíquico”. A obra de Machado tem como princípio de composição a ironia, o que a torna, ao mesmo tempo, poética e crítica. O próprio narrador machadiano, com pretensões científicas e proféticas pouco modestas, ironiza a si mesmo:

Não me interrompas, leitor precipitado; sei que não acreditas em nada do que vou dizer. Di-lo-ei, contudo, a despeito de tua pouca fé, porque o dia da conversão pública há de chegar.

Nesse dia, – cuido que por volta de 2222, – o paradoxo despirá as asas para vestir a japona de uma verdade comum. Então essa página merecerá, mais do que favor, apoteose. Hão de traduzi-la em todas as línguas. As academias e institutos farão dela um pequeno livro, para uso dos séculos, papel de bronze, corte-dourado, letras de opala embutidas, e capa de prata fosca. Os governos decretarão que ela seja ensinada nos ginásios e liceus. As filosofias queimarão todas as doutrinas anteriores, ainda as mais definitivas, e abraçarão esta psicologia nova, verdadeira, e tudo estará acabado. Até lá passarei por tonto, como se vai ver (1998, 155).

O solitário protagonista do enredo do conto, cuja ação se confunde com a tese do proeminente narrador, é o cônego Matias, que se encontrava detido na composição de uma grande obra particular, “entre livros e livros” (p. 155). Foi quando aceitou a tarefa de escrever um sermão a ser lido numa festa. O narrador machadiano assim descreve a cena em que o cônego se põe a trabalhar a encomenda:

Começou de má vontade, mas no fim de alguns minutos já trabalhava com amor. A inspiração com os olhos do céu, e a meditação, com os olhos no chão, ficam a um e outro lado no espaldar da cadeira, dizendo ao ouvido do cônego mil coisas místicas e graves. Matias vai escrevendo, ora devagar, ora depressa. (...) De repente, indo escrever um adjetivo, suspende-se; escreve outro e risca-o; mais outro, que não tem melhor fortuna. Aqui é o centro do idílio (p. 156).

Após os primeiros instantes de descontentamento, Matias trabalha com prazer. Brincando, como havia sugerido um dos festeiros que lhe pediram o sermão. O narrador, então, convida o leitor a subir à cabeça do cônego e passa a expor seus conhecimentos “psico-léxico-lógicos”, acreditando piamente estar lançando as bases de uma nova psicologia. Dividindo a cabeça do clérigo em dois hemisférios, revela sua descoberta: substantivos nascem num hemisfério e adjetivos noutro. Para espanto de sua suposta leitora, o narrador afirma que as palavras não só possuem sexo, como também amam umas às outras e se casam. O substantivo, recém-escrito pelo cônego, agora suspira pelo adjetivo. No hemisfério oposto, da mesma forma, o adjetivo sonha o substantivo. O barulho das inúmeras idéias na cabeça do cônego impede que tais apelos sejam ouvidos por ambos. No entanto, há um impulso irresistível a guiá-los: a força de Eros. Não é um anseio erótico qualquer, mas o que se encontra em Psique, na alma que os envolve. O consórcio de Sílvio e Sílvia – substantivo e adjetivo – é um pacto eterno, um amor predestinado.

Postas essas considerações por parte do narrador, eis que o cônego, diante das dificuldades envolvidas durante sua escrita, levanta da cadeira e vai à janela para espairecer. Raios de sol o iluminam. Ele se distrai ao ver um papagaio e um pavão, se esquecendo por um momento de Sílvio e Sílvia. O narrador intervém:

Mas Sílvio e Sílvia é que se lembram de si. Enquanto o cônego cuida em cousas estranhas, eles prosseguem em busca um do outro, sem que ele saiba nem suspeite nada. Agora, porém, o caminho é escuro. Passamos da consciência para a inconsciência, onde se faz a elaboração confusa das idéias, onde as reminiscências dormem e cochilam. Aqui pulula a vida sem formas, os germens e os detritos, os rudimentos e os sedimentos; é o desvão imenso do espírito. Aqui caíram eles, à procura um do outro, chamando e suspirando (p. 158).

O narrador-psicólogo leva o leitor até esse “desvão imenso do espírito”. Ao se dirigir aos abismos da alma do cônego, examina suas regiões inconscientes, onde não há máscaras, apenas pensamento. Justamente onde Sílvio e Sílvia se encontram dispersos. Mundo tumultuado de “embriões e ruínas”, onde idéias, livros, objetos, memórias, vozes, cantigas, sensações e medos se amontoam, junto aos abismos morais e às dores universais que ambos ultrapassam com entusiasmo. Desejando-se ardentemente, os amantes encontram-se cada vez mais perto um do outro.

Diante da balbúrdia inconsciente da cabeça do cônego, evocamos aqui o anti-canônico ensaio “Pensar por si mesmo”, no qual Arthur Schopenhauer compara o pensamento a um fogo que precisa ser atiçado. Pensar é uma disposição interior que não depende unicamente dos conhecimentos adquiridos. Diz o filósofo: “Só é possível pensar com profundidade sobre o que se sabe, por isso se deve aprender algo; mas também só se sabe aquilo sobre o que se pensou com profundidade” (2005, 39). Pensar por si mesmo é seguir um impulso particular, em que estão envolvidos o ambiente e as lembranças. Tais circunstâncias sugerem proximidade com a matéria a ser pensada. Schopenhauer vê a erudição como nociva a esse movimento, pois quando se está com um livro às mãos o pensamento é obrigado a seguir uma determinação externa.

A distinção que Schopenhauer faz entre os eruditos e os pensadores é que os eruditos repetem as coisas escritas nos livros e os pensadores fazem a leitura do livro do mundo. O filósofo diz que apenas os pensamentos próprios têm vida. Pensar por si mesmo é como criar um ser vivo. Aquele que o faz não se extravia, está sempre no caminho certo. As leituras, por sua vez, podem conduzir a muitos enganos. O pensamento próprio é o mais valoroso, o mais firme e o mais seguro, o único capaz de fecundar o espírito, que o concebe com originalidade. Por outro lado, influências de pensamentos alheios obscurecem e desorganizam o espírito, a ponto de lhe tirarem a capacidade de discernimento e entendimento. Iletrados são inúmeras vezes mais sagazes no que pensam do que muitos dos que se debruçam sobre os livros. Enquanto os eruditos, ou “filósofos livrescos”, podem a qualquer momento realizar pesquisas ou recorrer a conhecimentos empíricos para corroborar suas teorias, os pensadores autônomos apenas aguardam que o pensamento amadureça e se forme por si mesmo. Contrapõe-se assim uma atitude voluntária e previsível a outra, natural e surpreendente.

Schopenhauer só recomenda a leitura quando a fonte dos pensamentos seca. Não é comum ser acometido por um pensamento original, daí ser razoável dedicar à leitura o tempo em que não se está propriamente pensando. Ela funcionará apenas como um substituto ou um alimento para o ato de pensar. O filósofo adverte, porém, que o excesso de leitura pode nublar a visão do mundo real. Clareza e resolução, assim como espontaneidade nos juízos, são os atributos de um pensamento autêntico. Pensar não é para se obter um bem alheio, como é comum entre os sofistas, e sim o modo de alcançar a felicidade. O filósofo crê que, por ser o homem um animal entre outros animais, não lhe é dado tão-somente pensar. Por isso, há necessidade de tolerância ao viver entre os ruídos do mundo. Assim como Machado de Assis faz em seu conto, Schopenhauer evoca o amor para tratar do pensamento:

A presença de um pensamento é como a presença de quem se ama. Achamos que nunca esqueceremos esse pensamento e que nunca seremos indiferentes à nossa amada. Só que longe dos olhos, longe do coração! O mais belo pensamento corre o perigo de ser irremediavelmente esquecido quando não é escrito, assim como a amada pode nos abandonar se não nos casamos com ela (2005, 52).

Quando inspirados pela força do Cântico dos cânticos, a “lábia erudita”, Sílvio e Sílvia se encontram na cabeça do cônego: eis que irrompe o pensamento poético regido por Eros. “Nisto, o cônego estremece. O rosto ilumina-se-lhe. A pena, cheia de comoção e respeito, completa o substantivo com o adjetivo” (p. 161). Entrelaçados, substantivo e adjetivo darão sentido ao que o cônego dirá em seu sermão, se por fim coligir os seus escritos, abençoando o conúbio de Sílvio e Sílvia.

Quais seriam as provisórias conclusões a partir do diálogo de idéias entre a prosa bem-humorada de Machado de Assis e o desafiante ensaio de Arthur Schopenhauer? Assim como o próprio narrador do conto machadiano tencionara, Friedrich Nietzsche, o pensador-poeta, um dia afirmou, em seu nome e em nome de todos os criadores, o desafio: “Conheço a minha sina. Um dia, meu nome estará ligado à lembrança de algo tremendo – de uma crise como jamais houve sobre a terra, da mais profunda colisão de consciências” (2004, 109). Afirmações como esta, de Nietzsche, do narrador do conto de Machado, ou mesmo a ferocidade crítica de Schopenhauer, se não se perderem na dimensão randômica da realidade, perdurarão como imagens a revolver o pensamento. O que permanece é fundado pelos poetas, disse certa vez Hölderlin.

Fundadores, Machado e Schopenhauer lançam as bases perenes de uma filosofia da criação poética e de um pensamento original. Machado de Assis o faz na forma de um conto narrado em permanente tensão irônica. Schopenhauer, por sua vez, num ensaio que se revela na contundência de suas afirmações polêmicas. Em ambos os casos, são encontrados subsídios para fomentar o pensamento em torno da arte de escrever. O que mais importa para o pensador e o poeta do que cosmogonias e revoluções? Sílvio encontrará Sílvia. O idílio de Eros e Psique, tão altivo no conhecido poema de Fernando Pessoa, sempre a desejar a eternidade do instante no sonho da existência.

Referências bibliográficas

MACHADO DE ASSIS. Várias histórias. Rio de Janeiro: Garnier, 1998.
NIETZSCHE, Friedrich. Ecce homo – como alguém se torna o que é. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
SCHOPENHAUER, Arthur. A arte de escrever. Tradução, organização, prefácio e notas de Pedro Sussekind. Porto Alegre: L&PM, 2005.


Publicado no livro Jornada Discente Machado de Assis - Melhores artigos (2009), organizado por Dau Bastos, do Centro de Letras e Artes da UFRJ.