sexta-feira, 8 de agosto de 2008

NEM MEDALHÕES NEM ERUDITOS: DIÁLOGOS ENTRE MACHADO DE ASSIS E ARTHUR SHOPENHAUER

No conto “Teoria do Medalhão”, de Machado de Assis , há um receituário para a formação de um homem medíocre. Um pai aconselha seu filho, quando esse atinge a maioridade, sobre a importância de se tornar um medalhão, visando o bom e lucrativo convívio na sociedade. Para isto, é preciso que ele pense sempre o já pensado, use frases feitas e locuções convencionais, atrofie a imaginação, se abstenha da reflexão, decore o mais recente jargão científico e não tenha idéias próprias. Dialogar essas e outras “virtudes” do medalhão do conto de Machado com as ácidas considerações de Arthur Schopenhauer sobre a erudição e os eruditos de sua época, expostas em dois ensaios, “Sobre a erudição e os eruditos” e “Pensar por si mesmo”, ambos pertencentes à obra Parerga e Paralipomena, é a tarefa desse trabalho. Estará em jogo aqui um inaudito trânsito de pensamento entre os textos propostos e não o possível fato de Machado de Assis ter lido e recebido alguma influência das idéias de Schopenhauer. O debate fomentado não se ateará na causalidade de uma contextualização epocal dos autores, mas sim nas ressonâncias concretas que os escritos de ambos possam provocar a partir de sua atualidade.

“Teoria do Medalhão” consiste em um diálogo entre um pai e um filho. O recurso formal utilizado nos evoca a obra de Platão, onde Sócrates se dirige aos mais jovens para expor suas teses. Em ambos os autores a encenação de um diálogo que se destina a transmitir conhecimentos. No conto de Machado, a partir de seu tom humorístico, o texto assume ares de paródia. A maiêutica socrática não lhe ocorre. A palavra do pai é a tônica, age como se fosse um narrador na primeira pessoa a expor incansavelmente suas teses. O silêncio respeitoso e as breves interrupções do filho apenas sublinham o seu discurso.

A designação teoria, que substantiva o título do conto, remete a uma tradição de pensamento que desde a antiga Grécia é cultuada pelo ocidente. Trata-se da preponderância do olhar e, principalmente, de um determinado tipo de relação que o sentido da visão exerce sobre as coisas existentes. Ensina o filósofo Gerd Bornhein que o verbo theorein, que para os gregos significava uma das formas de ver , deriva de theoros, ser espectador, e a teoria aparece como “um ver concentrado e repetido, um ver que sabe ver, que inventa meios para cada vez mais ver melhor” (Bornhein, 1988, p. 89). Já o termo medalhão se aplica a um indivíduo importante, alguém que se destaca a partir de sua projeção profissional. A palavra possui sentido ambíguo. Conforme os méritos do medalhão, pode ou não ser usada como um termo pejorativo. No conto, regido pelo princípio da ironia, o seu significado é bem delimitado pelo discurso do pai. A teoria do medalhão é, portanto, um olhar aguçado sobre a constituição do que seja um medalhão a partir de sua prática vivencial na sociedade machadiana.

As palavras do pai sinalizam um rito de passagem, pois o filho está prestes a atingir a maioridade. O trânsito de gerações é visto com esperança. O que não fora realizado pelo pai poderá vir a ser executado pelo filho. O que os une é a perspectiva da gravidade atingida com a idade madura. Não a do espírito, mas a do corpo. São os inevitáveis sinais da natureza. Transformar-se num medalhão é, portanto, tarefa que se projeta na aurora da mocidade para que os seus benefícios possam ser desfrutados na maturidade. Sucesso é a palavra chave para tal empresa. Afirma o pai, a projetar no filho os seus próprios anseios não alcançados: “meu desejo é que te faças grande ou ilustre, ou pelo menos notável, que te levantes acima da obscuridade comum” (MACHADO, 1999, p. 74).

Alguns procedimentos se fazem absolutamente necessários para a composição da figura distintiva do medalhão. Concerne a esse ofício que o postulante não tenha idéias próprias para não precisar escondê-las. Melhor mesmo é se valer de gestos corretos e perfilados para comunicar simpatias ou antipatias sobre os assuntos triviais do cotidiano. Para que isso ocorra é necessário um bom manejar do discurso. “Sentenças latinas, ditos históricos, versos célebres, brocados jurídicos, máximas, é de bom aviso trazê-los contigo para os discursos de sobremesa, de felicitação e de agradecimento” (MACHADO, 1999, p. 78), aconselha o pai. Essas seriam fórmulas que desobrigariam os ouvintes a se esforçarem em busca de um entendimento mais profundo do que se diz. É preciso fundamentalmente aceitar o que foi posto e consagrado, pois “o método de interrogar os próprios mestres e oficiais da ciência, nos seus livros, estudos e memórias, além de tedioso e cansativo, traz o perigo de inocular idéias novas, e é radicalmente falso” (MACHADO, 1999, p. 79). Para se livrar de idéias originais que irrompem à mente com espontaneidade é preciso ler compêndios de retórica e ouvir determinados discursos. A solidão é prejudicial por ser uma oficina de idéias. Convêm juntar-se aos pasmatórios para compartilhar com eles numa saudável monotonia as mesmas opiniões. O polemos deve ser evitado a todo custo. O intelecto há de ser reduzido à sobriedade para permanecer flutuando na inércia do equilíbrio comum. O medalhão nunca deve usar a imaginação. Perigoso chegar a conclusões que não tenham sido achadas por outros, pois a reflexão e a originalidade, atributos de quem pensa com autonomia, são nocivas ao ofício do medalhão.

No ensaio “Pensar por si mesmo”, Arthur Schopenhauer diz que quem pensa por si mesmo segue o seu próprio impulso e não teme pensar algo que seja paradoxal. Sabe esperar pelo entendimento para amadurecer suas reflexões. Convive tranquilamente com a diversidade de pontos de vista. A melhor maneira de não ter pensamentos próprios é estar sempre com um livro às mãos. Ler demais é conveniente a quem quer desaprender a pensar.

Num outro ensaio seu, “Sobre a erudição e os eruditos”, Schopenhauer faz uma crítica demolidora aos eruditos alemães de sua época. Suas palavras têm como alvo um determinado tipo de profissional que sempre povoou as academias. O pensador diz que esses eruditos carecem de pensamentos próprios pelo excesso de tempo em que se dedicam avidamente à leitura. Sob o afluxo contínuo de pensamentos alheios colhidos nos livros, essas pessoas se conformam na dimensão restrita da informação. Schopenhauer difere a informação da instrução, sendo a primeira supérflua e substituível. No máximo, sua importância consistiria em ser um mero instrumento para se chegar à instrução. Os que se movem nos parâmetros limitados da informação se alimentam tão somente dos juízos que estão em voga. Pensar por si mesmo e instruir-se são ações que não se conformam em adaptar-se às correntes de pensamento vigentes, pois quem persegue a autenticidade dos pensamentos próprios carece de se importar com os dos outros. Os pensamentos alheios que circulam entre os eruditos referidos por Schopenhauer funcionam apenas como um adorno que pode ser trocado conforme o seu uso. São superficialidades que nunca se enraízam.

Schopenhauer faz um elogio aos diletantes, os que conservam o amor nas coisas que empreendem. Para os diletantes, os assuntos tratados têm um fim em si mesmo, ao contrário dos profissionais das mais diversas áreas, em que tais assuntos se constituem apenas num meio para a obtenção de interesses estranhos. Ao se cercarem de suas tarefas com extrema avidez, os profissionais escoram-se no argumento de que necessitam trabalhar para se sustentar. Schopenhauer afirma que as grandes descobertas e obras que a humanidade se reconhece e cultua foram feitas por diletantes e não por esses profissionais especializados. Diz o pensador que a diferença fundamental que se dá entre os diletantes e os profissionais é que os diletantes vivem para uma matéria enquanto os profissionais vivem de uma matéria. Quando Schopenhauer faz uma crítica feroz à postura dos eruditos, profissionais do conhecimento, parece estar evocando a imagem do medalhão do conto machadiano:

"As atividades de torcer, enroscar, acomodar-se e renegar suas convicções, ensinar e escrever coisas em que na verdade não acredita, rastejar, adular, tomar partidos e fazer camaradagens, levar em consideração ministros, gente importante, colegas, estudantes, livreiros, críticos, em resumo, qualquer coisa é melhor do que dizer a verdade e contribuir para o trabalho dos outros – são esses o seu procedimento e o seu método" (SCHOPENHAUER, 2005, p. 27).

Os eruditos mencionados por Schopenhauer fazem suas tarefas buscando apenas benefícios próprios. Almejam o poder somente para si mesmo. Querem apenas desfrutar do reconhecimento de seus pares. Do mesmo modo, no conto de Machado, em que a publicidade é a alma do negócio, o pai recomenda ao filho que as atividades do medalhão devem ser sempre noticiadas à imprensa. O que hoje é chamado de uma boa imagem e serve bem à política de interesses mesquinhos é fundamental para o medalhão, assim como o aparente sentimento de família, um bom círculo de amizades e a estima pública. O pai apresenta sua teoria: “A publicidade é uma dama loureira e senhoril, que tu deves requestar à força de pequenos mimos, confeitos, almofadinhas, coisas miúdas, que antes exprimem a constância do afeto do que o atrevimento e a ambição” (MACHADO, 1999, p. 79). Notícias geram notícias, diz o pai:

"Longe de inventar um tratado científico da criação de carneiros, compra um carneiro e dá-o aos amigos sob a forma de um jantar, cuja notícia não pode ser indiferente aos seus concidadãos. Uma notícia traz outra; cinco, dez, vinte vezes põe o teu nome ante aos olhos do mundo!" (MACHADO, 1999, p. 79).

Ao freqüentar festas, ocasiões especiais, ou participar de comissões e irmandades, o medalhão é um “ornamento indispensável, de figura obrigada, de rótulo” (MACHADO, 1999, p. 82). O curso de suas atividades não exclui outras que o medalhão possa vir a ter, inclusive as profissionais e políticas. Se possível, é de bom alvitre ocupar a tribuna do parlamento e convocar a atenção pública, mostrando-se aos holofotes. Ser o adjetivo dessas ocasiões é que importa. Afirma o pai que o adjetivo é a alma do idioma, a sua porção idealista e metafísica, enquanto o substantivo é a realidade nua e crua, o naturalismo do vocabulário. Nos discursos a serem proferidos pelo medalhão, o recurso da metafísica deve ser sempre utilizado. Pois as coisas que podem ser comprovadas na realidade, os chamados “negócios miúdos” exigiriam do medalhão conhecimentos supérfluos aos seus interesses. Diz o pai:

"Um discurso de metafísica política apaixona naturalmente os partidos e o público, chama os apartes e as respostas. E depois não obrigar a pensar e descobrir. Nesse ramo dos conhecimentos tudo está achado, formulado, rotulado, encaixotado; é só provar os alforjes da memória" (MACHADO, 1999, p. 82).

O valor dos ensinamentos do pai se dá na medida em que o funcionamento da sociedade acolhe esse tipo de conduta própria ao medalhão. Seu discurso se baseia em dados empíricos . Provém de um olhar aguçado a respeito dos movimentos do convívio social do qual participa. Ao afirmar que a vida é uma grande loteria, o pai define a estratégia correta para que o filho possa não só adentrar o jogo com circunspecção como também estar acima dele, manipulando-o. O pai se mostra como a voz da sabedoria, acumulada pela experiência do tempo. Como ele mesmo diz, seu repertório de considerações se equivale ao livro O Príncipe, de Maquiavel. O ofício de medalhão, assim como as recomendações maquiavélicas, exige a disciplina própria de uma arte. No fim, se bem executado o empreendimento, o ofício garantirá não só ao filho, mas também ao pai, um rol de virtudes para uma rentável teia de relações sociais.

A ironia, tão presente em todo o corpo da obra de Machado de Assis, que segundo o pai é “feição própria dos cépticos e desabusados” (MACHADO, 1999, p. 83), é desaconselhada e deve ser substituída pela chalaça. Essa se adapta melhor ao ofício. Rir com leviandade convém ao medalhão. Tragédia ou comédia humana? Pensemos. Evitamos até agora comparar o medalhão com as nem tão risíveis figuras públicas que povoam os noticiários desde a época de Machado até os dias de hoje. Preferível por hora mantê-las onde estão. Tampouco com as distorções causadas pela institucionalização de uma sociedade do conhecimento fundamentada pelas práticas mercantilistas de nosso tempo. Deixaremos tudo isso em aberto para que seja revisto por cada um de nós, livremente, desde já, com a evocação do conto de Machado e as considerações de Schopenhauer trazidas aqui.


BIBLIOGRAFIA

BORNHEIN, Gerd. As metamorfoses do olhar. In: O olhar. Organização: Adauto Novaes. São Paulo, Companhia das Letras, 1988.
MACHADO de Assis. Papéis Avulsos. Rio de Janeiro, Livraria Garnier, 1999.
SCHOPENHAUER, Arthur. A arte de escrever. Tradução, organização, prefácio e notas de Pedro Sussekind. Porto Alegre, L&PM Editores, 2005.

Publicado no CD dos anais do I Seminário Machado de Assis, realizado na UERJ em 2008.

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