sexta-feira, 15 de agosto de 2008

GASTON BACHELARD E A IMAGINAÇÃO MATERIAL E DINÂMICA

A obra de Gaston Bachelard é conhecida por apontar para duas direções. A que se porta em sinergia diante das conquistas da Física no século XX intenciona fundar um novo espírito científico. Fulgura aí a eminência de uma pedagogia inaudita da razão, a que constitui a face diurna de seus escritos. A outra, chamada de obra noturna, dedica sua atenção à imaginação. Desse lugar é que se dá o diálogo aberto de seu pensamento com a literatura. Bachelard, ao suscitar as imagens literais produzidas pela imaginação material e dinâmica, se coloca em permanente contato com as obras literárias, especialmente a poesia. O filósofo, em suas asserções, apresenta uma teoria poética que aponta para a legitimidade dos devaneios da matéria.

No pensamento de Bachelard, a revolução da imaginação material e dinâmica se opõe à imaginação formal, herdeira da tradição metafísica e bem adequada aos artifícios da linguagem lógico-matemática. A imaginação formal, centrada no sentido da visão, resulta num exercício constante de abstração. A simplificação psicológica, a desmaterialização e a intangibilidade são algumas de suas características. O homem nesse domínio atua como um mero espectador do mundo que o rodeia. Sua contemplação é ociosa e passiva. O contrário desse formalismo vem a ser a imaginação material e dinâmica, na qual o homem é um ativo interventor da matéria. Sua ação é a de um demiurgo, um artesão, um manipulador, e o seu mundo se converte numa constante provocação concreta e concretizante. Bachelard contrapõe à consagrada filosofia passiva da visão uma filosofia ativa das mãos, a que pertence aos artistas, aos alquimistas, aos obreiros e a todos os que enfrentam a matéria para transformá-la.

A tradição formalista de pensamento, que se ancora no privilégio do olhar sobre os demais sentidos, opta pela análise de cópias e representações da realidade. Ao se distanciar da realidade concreta, o formalismo negligencia os aspectos materiais da vontade humana. Contrapondo à contemplação ociosa dessa vertente, na qual os eventos são apenas espetáculos para a visão, Bachelard aponta para uma imaginação que se alimenta de uma vontade transformadora da matéria. A imaginação material e dinâmica, em consonância com a vontade de criar, reporta diretamente à influência do pensamento de Friedrich Nietzsche. Vontade de poder é vontade de criar. Manipular. Transformar. Modificar a matéria. A imaginação material e dinâmica, ao lidar com essas forças ativas, se encontra num permanente corpo-a-corpo com as substâncias do mundo. Sua atitude frente às coisas concretas é operante.

No pensamento de Bachelard, a filosofia ativa das mãos trabalhadoras substitui a uma filosofia passiva da arte, desenvolvida desde o pensamento platônico-aristotélico. Ao invés da inatividade do corpo, a compor o esteio formalista da tradição metafísica, Bachelard aponta para um dualismo energético que se dá entre as mãos e a matéria. As mãos operantes, que o pensamento originário de Anaxágoras outrora mencionara, são instrumentos da vontade de poder do artista. A mão artesã é a mão que trabalha e cria. Mão que está a serviço de forças felizes. Mão do trabalhador-artista, onde a arte é associada à liberdade. Escreveu Bachelard:

"A mão ociosa e acariciante que percorre as linhas bem feitas, que inspeciona um trabalho concluído, pode se encantar com uma geometria fácil. Ela conduz à filosofia de um filósofo que vê o trabalhador trabalhar. No reino da estética, essa visualização do trabalho concluído conduz naturalmente à supremacia da imaginação formal. Ao contrário, a mão trabalhadora e imperiosa aprende a dinamogenia essencial do real, ao trabalhar uma matéria que, ao mesmo tempo, resiste e cede como uma carne amante e rebelde" (BACHELARD, 2002, p. 14).

Qual seria essa dinamogenia essencial do real? Bachelard mergulhou no estudo das quatro substâncias primordiais, reveladas na antiga Grécia por Empédocles, ou os quatro elementos: o fogo, a água, o ar e a terra. Imagens primitivas que substanciam o que há de material e dinâmico no mundo. Imagens que traduzem temperamentos artísticos, poéticos e filosóficos.Os quatro elementos da natureza são vistos na sua obra como sentimentos humanos primitivos, realidades orgânicas primordiais e temperamentos oníricos fundamentais. Para o pensador há uma carência de estudos que tratam da materialidade na arte. Há que serem notados os devaneios materiais que antecedem à contemplação estética.

O pensamento objetivo da ciência tradicional não permite maravilhar-se. Sua postura tende a ser irônica. Preserva o divórcio com o objeto escolhido. Em A psicanálise do fogo, Bachelard propõe que os devaneios substituam os procedimentos da ciência do mesmo modo que poemas são capazes de substituir teoremas. O filósofo adere à sedução da primeira escolha ao rejeitar a distância da objetividade científica. Bachelard mostra que o fogo é um objeto imediato. Tem valor fenomenológico ao atuar numa zona objetiva impura, onde intuições pessoais e experiências científicas se confundem. Bachelard recusa o plano histórico para falar do fogo, pois “[...] as condições antigas do devaneio não são eliminadas pela formação científica contemporânea” (BACHELARD, 1994, p. 5). Seu foco é a secreta permanência de uma idolatria. A psicanálise do fogo é a das condições subjetivas relacionadas aos conhecimentos do fenômeno. Os próprios cientistas, quando respondem sobre o que é o fogo, recorrem a um repertório de imagens primitivas. As experiências, a partir daí, são íntimas e afetivas. Nessa atividade fenomenológica são postas em suspensão noções de totalidade, de evolução, de sistema e de desenvolvimento.

Em A água e os sonhos, Bachelard vê a água como um elemento transitório, ligado a um tipo de destino que se metamorfoseia incessantemente. “O ser ligado à água é um ser em vertigem. Morre a cada minuto, alguma coisa de sua substância desmorona constantemente” (BACHELARD, 2002, p. 7), escreveu. O filósofo discorre sobre as superficiais águas claras e brilhantes, as águas vivas, que renascem a partir de si mesmas, e as águas amorosas. A água é o elemento das misturas. Junto à terra, se transforma em massa a ser modelada. Traduz experiências de fluidez e maleabilidade. Tem caráter feminino e de maternidade. Mas também irrompe violentamente nas ondas do mar em seus constantes fluxos e refluxos. Quase todos os exemplos que compõem A água e os sonhos são tirados da poesia das águas. Para Bachelard, a água é uma realidade poética completa.

Uma ação imaginante, aberta em permanente mobilidade criativa, é proposta central de O ar e os sonhos. A imaginação aérea a deformar as imagens fornecidas pela percepção, libertando-as das primeiras impressões, é capaz de mudar substancialmente suas formas. Imaginação sedutora, fecunda e vitalizante. Palavras que inauguram novos vôos psíquicos. Desejos de alteridade, de duplo sentido. A imanência do imaginário realiza-se num convite à viagem. Trajeto que conduz aos domínios imaginativos das profecias e utopias. Escreveu Bachelard: “Cada objeto contemplado, cada grande nome murmurado é o ponto de partida de um sonho e de um verso, é um movimento lingüístico criador” (BACHELARD, 2001a, p. 5). A poética do ar ultrapassa o pensamento. Produz metáforas. Fascina pelas imagens que realizam irrealidades num dinamismo revelador. Movimento aéreo que libera. Psicologia ascensional a produzir alívio e alegria em sua leveza e ligeireza. Tonicidade da palavra. Verticalidade. Para o alto: júbilo, amplificação do sentido. Para baixo: a queda moral. O pesar das palavras: descensão catabática. O ar é o elemento que age diretamente ligado à imaginação poética na linguagem.

As imagens que o elemento terra suscita ocorrem em torno de dois signos. A extroversão diz respeito aos devaneios ativos que agem sobre a matéria e a introversão traduz as imagens sugeridas pela intimidade. São pólos dialéticos que sugerem um duplo movimento. Tal ambivalência é demonstrada por Bachelard em um díptico que, ao mesmo tempo, une e separa idéias de trabalho e repouso. O pensador dividiu em dois volumes sua obra destinada às imagens da terra: A terra e os devaneios da vontade e A terra e os devaneios do repouso.

A terra traz dificuldades e paradoxos sem fim para as teses da imaginação material e dinâmica ao oferecer uma forma manifesta que se faz evidente. No entanto, a esse bem ver, que se quer realista, complementa-se paradoxalmente um bem sonhar. Além da imagem percebida está a imagem criada. Sua reprodução se apóia na memória. Torna-se, ao mesmo tempo, uma função do realizado, do irreal e do que ainda está por realizar-se. A imaginação, em seu caráter primitivo, atende aos devaneios da vontade. Se antecipa ao realismo petrificante na aventura dinâmica da percepção de uma nova forma. A constatação empírica se apóia num forjamento criativo. As imagens formadas derivam de sublimações de arquétipos inconscientes. Os devaneios decorrem de uma imaginação ativista, onde uma “[...] vontade que sonha e que, ao sonhar, dá um futuro à ação” (BACHELARD, 1990, p. 1). Na dupla realidade da imagem, física e psíquica, dá-se a união do imaginado com o imaginante. O homo faber é o modelador, o fundidor, o ferreiro, o que pratica uma atividade de oposição à matéria, configurando-a.

A esse contra, resultante da vontade, opõe-se um dentro, que alude ao repouso. A matéria imaginada torna-se imediatamente a imagem de uma intimidade. As afetividades inconscientes convergem para o centro terrestre. As potências subterrâneas aparecem em involução como ideais de repouso. A terra e os devaneios do repouso diz sobre a beleza íntima da matéria; sua massa de atrativos ocultos; o espaço afetivo que há no interior das coisas; a sua concentração material; e o conflito ou a tranqüilidade que aí reside. São evocadas as imagens de refúgio. A casa, o ventre e a gruta, que sinalizam uma profundidade tranquila ao homem. Por outro lado, as imagens que sugerem o movimento interior são angustiantes, caso do labirinto, da serpente e da raiz. O livro traz também um estudo sobre o vinho e a vinha dos alquimistas, onde é proposto um devaneio das essências intimas.

Sendo um ledor, atestando a sua própria competência para a leitura, Bachelard, ao tratar da imaginação material e dinâmica, assevera sua opção fenomenológica pela literatura. O privilégio de seus estudos recai nas imagens novas, deixando de lado as imitações inoportunas. A tradição poética suplanta a mimética no interesse de suas pesquisas. As imagens que provocam novidades são as que presentificam experiências com a linguagem, onde a ação da imaginação criadora sobressai. O ímpeto literário de sua época é visto como uma explosão da linguagem, fruto da interdependência ativa entre imaginação e vontade. O pensamento de Bachelard é regido por fascinações. Diz o filósofo que “[...] a linguagem poética, quando traduz imagens materiais, é um verdadeiro encantamento de energia” (BACHELARD, 2001b, p. 6). Ao se deter no estudo de suas convicções poéticas, Bachelard afirmou estar exercendo uma filosofia da imagem literária.

O instante poético é supervalorizado no pensamento de Bachelard na sua crítica à horizontalidade contínua do bergsonismo. Segundo o pensador, o tempo acontece em uma verticalidade instantânea, sendo dividido em instantes absolutos. Tais instantes se mostram como eventos de linguagem. Apreender o poético é experimentá-lo no instante de sua eclosão. No ensaio Instante poético e instante metafísico, o pensador sentencia:

"A poesia é uma metafísica instantânea. Num curto poema deve dar uma visão de universo e o segredo de uma alma, ao mesmo tempo um ser e objetos. Se simplesmente segue o tempo da vida, é menos do que a vida; somente pode ser mais do que a vida se imobilizar a vida, vivendo em seu lugar a dialética das alegrias e dos pesares. Ela é então o princípio de uma simultaneidade essencial, na qual o ser mais disperso, mais desunido, conquista unidade" (BACHELARD, 1986, p. 183).

Para Bachelard, a poesia recusa caminhos pré-estabelecidos. Ela possui uma felicidade própria e única. Sua imagem é a de uma doação. A solidão feliz e imediata é o prazer do poético. Seu tempo é vertical, um tempo detido. O pensador diz que o instante poético é uma relação harmônica que une elementos contrários. Com o aflorar de um dinamismo específico em sua ordem interna, abriga a ambivalência de ser e não-ser. Resulta numa simultaneidade sensível de eventos. Unidade de luz e sombra que compreende toques, perfumes, cores e sons.

Contrários ao estado instantâneo de poesia, em que a imaginação material e dinâmica é forjada, estão todas as possíveis explicações causais e retroativas em torno da imagem poética. Há em Bachelard uma inversão da crítica literária regida pela contemplação e pelo distanciamento em relação às obras. Nas suas formulações a respeito das imagens literárias, o pensador não almeja explicar o presente pelo passado e sim compreender o passado pelo presente. O sentido de seu pensamento se harmoniza com a perspectiva hermenêutica empenhada em propor novos horizontes de interpretação dos textos literários. Requer uma leitura aberta ao futuro. Bachelard não limita o corpo de seu pensamento num sistema fechado. Em vez de buscar afirmações definitivas, está sempre procurando abrir mão do recurso da retificação. O devaneio constitui-se na sua obra como método e liberdade.

Nosso plano aqui, a partir da leitura atenta dos prefácios e introduções de alguns de seus livros, consistiu em trazer algumas considerações sobre a proeminência de uma pedagogia da imaginação material e dinâmica como abertura a procedimentos originais na realização de novos estudos literários. Trabalhos que venham a se caracterizar pelo ineditismo da criação e não pela repetição de fórmulas consagradas e gastas.

Sem querer delimitar precisamente algo que se possa chamar de um procedimento bachelardiano, tentamos formular algumas poucas e possíveis afirmações provisórias a respeito do pensamento de Gaston Bachelard para os assuntos de nosso interesse, os que concernem às estratégias interpretativas, especialmente as que, de um modo ou de outro, venham a se identificar com uma poética. Retomando as provocações desse importante pensador nos lançamos no nosso próprio caminho, buscando, a partir de sua atualização, fornecer novas respostas às questões que tratam da interpretação dos textos literários.

BIBLIOGRAFIA:

BACHELARD, Gaston. A água e os sonhos – Ensaio sobre a imaginação da matéria. Tradução de Antonio de Pádua Danesi. São Paulo, Martins Fontes, 2002.
-------------------------- O ar e os sonhos – Ensaio sobre a imaginação do movimento. Tradução de Antonio de Pádua Danesi. São Paulo, Martins Fontes, 2001a.
-------------------------- A psicanálise do fogo. Tradução de Paulo Neves. São Paulo, Martins Fontes, 1994.
-------------------------- A terra e os devaneios da vontade – Ensaio sobre a imaginação das forças. Tradução de Maria Ermantina Galvão. São Paulo, Martins Fontes, 2001b.
-------------------------- A terra e os devaneios do repouso – Ensaios sobre as imagens da intimidade. Tradução de Paulo Neves da Silva. São Paulo, Martins Fontes, 1990.
-------------------------- O direito de sonhar. Tradução de José Américo Motta Pessanha, Jacqueline Raas, Maria Lucia de Carvalho Monteiro e Maria Isabel Raposo. São Paulo, DIFEL, 1986.


Publicado nos anais do XI Congresso internacional da Abralic, realizado na USP em 2008.

Um comentário:

Nonato Gurgel disse...

Bachelard e seus elementos põem a gente em contato com uma figurinha rara: aquele eu profundo de quem fala Pessoa e com quem fazemos exímias parcerias.