quinta-feira, 2 de maio de 2013

A MUSICALIDADE NA OBRA DE GUIMARÃES ROSA


“Sou precisamente um escritor que cultiva a ideia antiga, porém sempre moderna, de que o som e o sentido de uma palavra pertencem um ao outro. Vão juntos. A música da língua deve expressar o que a lógica da língua obriga a crer”, afirmou João Guimarães Rosa ao crítico alemão Gunter Lorenz (1983, p. 88). A confissão de Rosa evidencia como o escritor pensava (e sentia) a tensão dinâmica que rege a musicalidade das palavras. Musicalidade? Todos os significados dessa palavra apresentados pelo Dicionário Houaiss – “caráter, qualidade ou estado do que é musical”; “talento ou sensibilidade para criar ou executar música”; “sensibilidade para apreciar música; conhecimento musical”; “expressão do talento musical de alguém”; e “cadência harmoniosa; ritmo” (Houaiss, 2001) – se mostram oportunos para motivar uma leitura original da obra rosiana.

Música, corpo e evento sonoro, é o que se faz no encontro de ser e tempo. Já a musicalidade pode ser vista como anterior à música. Uma potência que propicia ao homem fazer música. Nesse sentido é que discorrer sobre a musicalidade na literatura é o mesmo que falar do que envolve não só o escritor na consecução de sua obra mas também o leitor ao se deparar com o texto. O que determinaria o grau de musicalidade de um texto? Seria correto afirmar que todos os textos contêm musicalidade e que alguns são mais aptos ao leitor fazer de sua leitura uma experiência musical?

A prosa do Corpo de Baile, obra publicada em 1956 (no mesmo ano de Grande Sertão: Veredas), ao encontrar-se tão próxima da poesia em sua essência e origem, contém uma disposição musical que transparece e faz soar sentidos inauditos. Quase desnecessário afirmar que é preciso gostar para lhe dar um acolhimento amoroso. Gostar, verbo que vem da mesma raiz do grego geúo, quer dizer provar ou experimentar. Ler em voz alta ou silenciosamente. Experimentar a tríade que envolve o leitor, a leitura e o ato de ler. Musicar a obra literária na medida em que o ritmo da leitura venha trazer inevitáveis sugestões melódicas e harmônicas. Aproximar-se da sonoridade de cada palavra.

O encadeamento, a abertura das vogais e a alternância consonantal, são elementos que têm como propriedade dar ao leitor a musicalidade do texto. No entanto, a obra de Rosa oferece mais. Faz vibrar a celebração poética dos sons constituídos nas palavras. Sons que prescindem da apreensão representacional do mundo. Palavras que confluem “na alegria de tudo, como quando tudo era falante, no inteiro dos campos-gerais...” (Rosa, 1965, p. 67). Poética no transe de sua sagração sonora, onde o nome e a coisa nomeada se fundem. Unificam-se concomitantemente no mesmo destino cósmico a presença e o som.

Dirce Riedel, na pioneira investigação em torno da musicalidade da obra de Guimarães Rosa, escreveu em 1962 uma tese chamada O Mundo Sonoro de Guimarães Rosa. Seu maior mérito foi levantar questões sobre a importância do reconhecimento de um operar musical na escrita de Rosa. A autora, na introdução de seu texto, observou no escritor uma disposição para “para se deter diante das coisas, colocando-se dentro delas” (1962, p. I). Ao tocar na questão da “multiplicidade dos ruídos do sertão” (1962, p. 48), Riedel evocou a relação ordenadora que une o evento ruidoso e a música. A obra de Guimarães Rosa, sendo um cosmo ordenado, absorve o ruído e o faz soar como música? O que é o ruído? Seria a “submúsica” (1969, p. 84) mencionada por Rosa em Buriti? Diz a autora que “as imagens suscitadas pelos ruídos ambientes constroem o fundo permanente na narrativa, sustentando a atmosfera sonora do sertão” (1962, p. 72). José Miguel Wisnik, em O Som e o Sentido, afirma que a noção de ruído varia de acordo com o contexto em que este ocorre. As teorias da informação, que lidam com categorias como mensagem, sinal, emissão e recepção, por sua vez, veem o ruído como um elemento desordenador. Se tomado pela ótica da instrumentalidade, é exemplo de uma interferência indesejável, algo que impede o fluxo da comunicação. A arte musical, que o recalcou durante séculos, tornou a acolhê-lo no século XX.

Há na essência do ruído uma duplicidade. Ela sugere o trânsito entre a deformidade caótica e a ordem cósmica. “O jogo entre som e ruído constitui a música. O som do mundo é ruído, o mundo se apresenta para nós a todo momento através de frequências irregulares e caóticas com as quais a música trabalha para extrair-lhes uma ordenação” (2000, p. 30), afirma Wisnik. O reconhecimento de uma ordem entre os ruídos do mundo é a base constitutiva para a formação das sociedades. No mundo arcaico, onde se assumia a constante luta com as forças caóticas, foi sempre a experiência do sagrado que regeu a possibilidade de uma ordenação cósmica. Observa-se que, nos povos da Antiguidade, a música, ao desafiar o caos, se impunha como matriz constituinte de suas cosmogonias. Daí pode-se afirmar, ao inverter a frase, que todas as cosmogonias originárias são fundadas pela música. Wisnik aponta que, através da indiferenciação da dor e da alegria na música que é tida como primitiva, o ruído se mostra indivisível em sua musicalidade. Na captação telúrica dos sons – irradiadores de elementares fluxos de energia – é que nasce a força geradora da ordem do mundo, ordem fundada nos rituais sagrados em que os sons se metamorfoseiam nas vozes das deidades.

Apoiando-se no pensamento do musicólogo Marius Schneider, Wisnik relembra os mitos da concepção do mundo e observa que neles está sempre embutida uma voz primordial: “O deus profere o mundo através do sopro ou do trovão, da chuva ou do vento, do sino ou da flauta, ou da oralidade em todas as suas possibilidades (sussurro, balbucio, espirro, grito, gemido, soluço, vômito)” (2000, p. 34). As emanações sonoras originárias vêm sempre de um vazio, um nada, um não-ser inominável. Citado por Wisnik, Schneider afirma que esse principiar é como “um fundo de ressonância, e o som que dele emana deve ser considerado a primeira força criadora, personificada na maior parte das mitologias por deuses-cantores” (apud Wisnik, 2000, p. 34).

Octavio Paz, ao lembrar que toda criação humana está fundada no ritmo, escreveu: “Todas as concepções cosmológicas do homem brotam da intuição de um ritmo original” (1982, p. 72). Segundo o escritor, o tempo é encarnado pelo verbo e se mostra nas realizações humanas, regidas poeticamente. “A frase poética é tempo vivo, concreto – é ritmo, tempo original, perpetuamente se recriando. Contínuo renascer e tornar a morrer e renascer de novo” (1982, p. 80-81), afirmou. O ritmo, elemento primordial da música, perpassa e engendra toda e qualquer produção poética. Para Paz, o poeta é um mago que, por intermédio do ritmo, encanta a linguagem. Escreveu ele: “no fundo de todo fenômeno verbal há um ritmo. As palavras se juntam e se separam atendendo a certos princípios rítmicos. Se a linguagem é um contínuo vaivém de frases e associações verbais regido por um ritmo secreto, a reprodução desse ritmo nos dará poder sobre as palavras” (1982, p. 64).

Em toda a narrativa do Corpo de Baile vê-se o entrelaçamento rítmico de sons, sejam musicais ou ruidosos. No percurso do conto "O Recado do Morro", além da teia de diálogos entre os personagens principais e periféricos, da canção de Laudelim Pulgapé e dos sons musicais emitidos pelos homens em torno da preparação de seus festejos, acontecem em simultaneidade diversos sons da natureza em sua dinâmica movente. O conto de Rosa, afora a trama de vida e morte protagonizada por Pedro Orósio e cantada por Laudelim Pulgapé, possui variados elementos sonoros que ecoam livremente, criando uma atmosfera própria que envolve os personagens. Esses elementos evidenciam ainda mais que na obra rosiana há um parentesco vital entre a arte de contar histórias e a arte musical. O escritor, além disso, articula uma armação sinfônica peculiar que dialoga com o universo humano da narrativa. Os sons são constituintes de um operar musical da obra em que seu cantador, Laudelim Pulgapé, é o principal solista.

Atuando junto à narração como contraponto ou efeitos, não faltam simples exemplos dessas sonoridades. Há sons como as “redondas chuvas ácidas, de grande diâmetro, chuvas cavadoras, recalcantes, que caem fumegando com vapor e empurram enxurradas mãos de rios, se engolfam descendo por fios de furnas, antros e grotas, com tardo gôrgolo musical” (1965, p. 6). Há também a passarada, os papagaios que gritam, o gavião que gutura, “os sofrês cantando claro em bando nas palmas da palmeira” (1965, p. 9) e “o pipio seriado da codorna” (1965, p. 36). “Da gameleira o passarim, superlim. E, longe, piava outro passarinho – um sem nome que se saiba – o que canta a toda hora do dia, nas árvores do ribeirão: – ‘Toma-a-benção-ao-seu-ti-í-o, João!...’” (1965, p. 22). Neste trecho, especificamente, a articulação de sentido do canto dessa ave rara e anônima segue o mesmo processo de composição que nomeou um pássaro bem conhecido, o conhecidíssimo bem-te-vi. Poder que preside toda criação poética, o de acasalar som e palavra.

Dicionário Grove de Música relata que, originariamente, para a produção de efeitos melódicos na voz ou em instrumentos musicais, o modelo imitativo era “o canto dos pássaros e outros sons animais, bem como o choro e as brincadeiras infantis” (Sadie, 1994, p. 592). Na escrita de Rosa, a melodia da palavra pode ser tanto ouvida em sons involuntários como o “bilo-bilo” (1965, p. 7) do riachinho, motivo recorrente em sua obra, quanto nos sons produzidos pelo homem, donde se ouve “um carro-de-bois, cantando muito bonito, grosso – devia de estar com a roda bem apertada” (1965, p. 36). Melodia que também se encontra no som dos aboios, ouvido pela vaqueirama: “O gado entendia, punha orelhas para o aboio, olhavam, às vezes hesitavam” (1965, p. 147). E na música propriamente dita, mesmo que na entonação estranha de Seo Alquiste e Frei Sinfrão, que juntos “cantavam cantigas com rompante, na língua de outras terras, que não se entendia” (1965, p. 25).

A escrita de Rosa é a escuta de uma complexa paisagem sonora. Há nas suas palavras uma gama de sons que se encontra em uma cadência musical espontânea. A ordem dos sons acontece como uma cosmofonia, um formar-se sonoro que se apresenta aos sentidos do leitor. A ação na obra de Rosa se dá em grande parte fundada como oralidade. Rosa permanece atado ao relato e à preservação do verbo ancestral. Sua prosa poética tem fortes raízes na música trabalhada pelos poetas e cantadores do sertão. O mundo se faz mundo através de sua musicalidade. Guimarães Rosa é um escritor que presta especial homenagem à fecundidade do mundo auditivo.

No conto "O Recado do Morro", a arte musical de Laudelim Pulgapé e o evento da festa contribuem lado a lado para compor seu universo sonoro. Rosa traz para o interior de sua narrativa uma série de elementos da cultura popular, situando-os no contexto em que os personagens se movem. Festa, que é nome de uma das nove musas da Teogonia, de Hesíodo, no Corpo de Baile é um evento que demarca a ação do tempo em "O Recado do Morro", sendo também o eixo da narrativa de "Uma estória de amor" e a apoteose teatral que envolve os personagens de "A estória de Lélio e Lina". Alegria da palavra! (1965, p. 42). A festinha a ser realizada domingo no Azevre rendia preparações. Via-se “nas cafuas, perto das estradas, em casas quase de cada negro se ensaiava, tocando caixas, com grande ribombo” (1965, p. 43), “era aquele guararape brabo: rufando as caixas, baqueando na zabumba” (1965, p. 50). “Os dos ranchos: os moçambiqueiros, de penacho e com balainhos e guizos prendidos nas pernas; grupos congos em cetim branco e faixa, só faltando os mais adornos; e a rapaziada nova, com uniforme da guarda-marinheira” (1965, p. 50). Luís da Câmara Cascudo, para descrever os ranchos, citou as palavras do também etnólogo Nina Rodrigues: “O Rancho prima pela variedade de vestimentas vistosas, ouropéis e lantejoulas, a sua música é o violão, a viola, o cavaquinho, o ganzá, o prato e às vezes uma flauta; cantam os seus pastores e pastoras, por toda a rua, chulas próprias da ocasião” (apud Cascudo, 1972, p. 767). Havia no Azevre o pessoal do Mascamole e do Tu, “chefes, tribuzando no tambor: tarapatão, tarapatão, barabão, barabão!...” (1965, p. 51). Também, em festa, na narrativa rosiana “vinham passando uns vinte sujeitos, todos compostos nos trajes brancos e com os capacetes – era a Guarda Marinheira – amanhã haviam de dançar e cantar, rendendo todas as cortesias à Nossa Senhora do Pretos” (1965, p. 56).

Por sua vez, no conto "Cara-de-Bronze" são muitos os diálogos entre os personagens. Centrado na poesia, o enredo convive com uma musicalidade peculiar. Enquanto da varanda da casa se ouve o cantador João Fulano, entretido no toque de sua viola e na elaboração precisa de seus versos, ali perto, nos arredores da fazenda do velho Cara-de-Bronze, ecoam sons como os latidos dos “cães imemoriais” (1965, p. 97). A escuta recai ao fundo, onde se dão os aboios e os gritos dos vaqueiros nas apartações do gado e as chuvas seguidas de intensos trovões, tão pertinentes nessas terras. “Chuvisca, com rumorejo de fritura. Soam sempre os berrantes, seu uuu trestreme” (1965, p. 91), comenta o narrador. “Touros, de curral para curral, arruam o berro tossido, de u-hu-hã, de desafio” (1965, p. 92), e realçam o som em off do roteiro cinematográfico em que a narrativa se transforma.

Pássaros canoros, por sua vez, são listados no conto em uma nota de pé de página. São as “qualidades de aves do céu e passarinhim que pia e canta” (1965, p. 113). Entre tantos, as “seriemas gritando e correndo, ou silenciosas” (1965, p. 112) e o canto noturno dos socós. O vaqueiro Grivo, em sua extensa viagem na busca da essência da poesia, abre seus ouvidos e nota com precisão “o daridare das cigarras” (1965, p. 110), canto que se harmoniza com a grande sonoridade orquestral ostentada pelas árvores encontradas no caminho de sua peregrinação. Nomeadas uma a uma, as árvores são, como os melodiosos pássaros, reunidas por Guimarães Rosa em uma longa e sonora nota de pé de página.

Uma pretensa leitura do Corpo de Baile que leve em conta aspectos de sua musicalidade pode dar a dividi-lo em movimentos e interpretá-lo a partir de seus ritmos e andamentos diversos. Na obra até é possível, por um esforço de analogias, reconhecer metaforicamente uma estrutura semelhante às peças musicais constituídas ao longo da história da música ocidental, como sonatas, fugas e mesmo sinfonias. No caso específico do "Cara-de-Bronze", sua construção polimórfica tem contornos de uma ópera moderna, onde se misturam diversos elementos de composição, inclusive teatrais e cinematográficos.

Já em "A estória de Lélio e Lina", além dos diálogos dos personagens e das cantigas do violeiro e cantador Pernambo, os sons mais presentes ao longo da narrativa são os dos animais, principalmente o rumorejar melodioso dos pássaros. São muitos os exemplos:

"(...) o curiango cantava, mais cedo e mais rouco, como na entrada-das-águas ele gosta de cantar: – Amanhã eu vou... Amanhã eu vou... E trovejava repetido, no longe da serra do Soldãe" (1965, p. 134);
"A animalada era sã de mansa: compreendiam espertamente os grandes sons em a, e alguns já aplaudiam pés no chão, querendo vir ao curral" (1965, p. 142);
"Passarinhos em desarripio cantavam nas moitas e árvores" (1965, p. 143);
"(...) as araras mandavam e ralhavam, onde queriam, toda a parte" (1965, p. 145);
"Um cachorro latia, com sotaque humano. Passarinho cantava, o canto de chama: no que diz, desdiz..." (p. 178);
"(...) só se ouvia o pio dos sabiás-de-peito-alaranjado" (1965, p. 194);
"(...) faltava nada para as saracuras cantarem. Os passarinhos refinavam. Com esses mil gritos, as maitacas, as araras, os papagaios se cruzavam" (1965, p. 245).

Os elementos sonoros podem ser fartamente demonstrados na prosa poética de Guimarães Rosa. Há música nas suas palavras. Mas o que é a música? Sua etimologia leva aos antigos gregos e seus mitos. A música que vem das musas, deusas que se fazem nas palavras cantadas dos poetas. Fundadores das palavras, os poetas músicos são os primeiros e grandes nomeadores. Falar da obra de Guimarães Rosa é falar dos nomes e desse poder de nomear.

Uma poética da musicalidade se dá originariamente a partir do poder das musas. Na consagração dessas divindades, música e poesia lançam o homem na concreta possibilidade de realizar-se na melodia e no ritmo de uma harmonia cósmica. Com seu apostolado, restitui-se a fé arcaica e pré-reflexiva de que a fonte de toda linguagem é musical. Vive-se no limiar de experiências criativas e fabulosas que acontecem em sua totalidade realizadora entre a terra e o céu, os mortais e os imortais. Um dos grandes ensinamentos do Corpo de Baile é o acatamento festivo de que a existência se faz de acordo com o fluir de uma ressonância vital.

Hans-Georg Gadamer afirma que a experiência da festa é sempre para todos. Dessa forma, festejar se determina pela reunião. Esse ato comemorativo engloba certos costumes tradicionais que conduzem sempre a um retorno às origens das ações coletivas. A ordem temporal das festas vem a partir desse comungar de ações. O tempo abandona o caráter sucessivo que o cinde e se torna cíclico. Ao livrar-se da tirania do indivíduo, o tempo de uma festa se distingue radicalmente do que jaz na objetividade cotidiana. Deixa de ser tanto o tempo de uma pobre monotonia quanto o de um preenchimento excessivo, dimensões comumente aferidas pelos limites das individualidades. Gadamer mostra a identidade que há entre o corte temporal da festa e a experiência da obra de arte. A celebração, “pela sua própria festividade, dá o tempo, e com a sua festividade faz parar o tempo e leva-o a demorar-se – isto é o festejar” (1985, p. 65). O mesmo acontece com o tempo das obras de arte, tempo que, nas palavras do autor, “deixa-se descrever muito bem com a experiência do ritmo” (1985, p. 63). Para o pensador, é essa a experiência que unifica homem e obra de arte. Se, por um lado, há o ritmo interno do homem em sua intimidade existencial, por outro haverá o ritmo da obra. Demorar-se na obra é que permitirá ao homem penetrar em seu universo particular, deixando-se conduzir numa correspondência rítmica ao celebrá-la em seu próprio tempo. 

Referências bibliográficas:

CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. Rio de Janeiro: Ediouro, 1972.
GADAMER, Hans-Georg. A atualidade do belo: a arte como jogo, símbolo e festa. Tradução de Celeste Aída Galvão. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1985.
LORENZ, Gunter. "Diálogo com Guimarães Rosa". In: Coleção Fortuna Crítica. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira/Pró-Memória – Instituto Nacional do Livro, 1983.
PAZ, Octavio. O arco e a lira. Tradução de Olga Savary. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.
ROSA, João Guimarães. Noites do sertão. Rio de Janeiro: José Olympio, 1969.
__________. No Urubuqùaquá, no Pinhém. Rio de Janeiro: José Olympio, 1965.
RIEDEL, Dirce. O mundo sonoro de Guimarães Rosa. Tese para concurso à cátedra de Português e Literatura do Curso Normal do Instituto de Educação do Estado da Guanabara. 1962.
SADIE, Stanley. Dicionário Grove de Música (edição concisa). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994.
WISNIK, José Miguel. O Som e o Sentido: uma outra história das músicas. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

Publicado no site Portal da Educação Pública, 2008.

OS ELEMENTOS MUSICAIS E A ESCRITA


Atendo-nos às definições correntes dos principais elementos que constituem a música – a melodia, a harmonia e o ritmo – , nos vem a pergunta sobre as suas origens e o seu desenvolvimento. O que é o ritmo? O que é a harmonia? O que é a melodia? Como estas palavras se transformaram em conceitos regentes do que vem a se chamar de arte musical?

Com o estudo da origem do termo "ritmo" no Ocidente, Émile Benveniste o localiza entre os antigos gregos, fundamentando sua pesquisa na história do desenvolvimento da palavra rytmós. O linguista investiga a ligação existente entre as palavras rytmós e rein, isto é, entre ritmo e fluir. Com isso, desmistifica a noção ingênua de que o ritmo, como é hoje designado, foi entendido quando o homem, ao observar o mar, notou no movimento de fluxo e refluxo de suas ondas uma constante regularidade. Benveniste explica que a noção de ritmo enquanto o vai-e-vem das ondas não se compreende na palavra rein, que por sua vez sugere a imagem de um contínuo fluir dos rios, em sua permanente correnteza.

Segundo Benveniste, antes de ser o que hoje é entendido como ritmo, rytmós tinha um outro sentido, que era o de ser uma “forma distintiva, figura proporcionada, disposição” (1991, p. 366). Demócrito, filósofo da escola jônica, empregava rytmós como “forma”, ou seja, “o arranjo característico das partes num todo” (1991, p. 364). Esta definição também é encontrada em textos de Heródoto, Leucito, Anacreonte, Teócrito e Xenofonte, na lírica de Arquíloco, na poesia trágica de Ésquilo, Eurípedes e Sófocles, e na filosofia de Platão e Aristóteles.

Como existem outras palavras em grego para designar “forma”, Benveniste explica que rytmós, especificamente nos contextos em que aparece, designa a forma no instante em que é assumida por aquilo que é movediço, móvel, fluido, a forma daquilo que não tem consistência orgânica: convém ao pattern de um elemento fluido, a uma letra arbitrariamente modelada, a um peplo que se arruma como se quer, à disposição particular do caráter ou do humor. É a forma improvisada, momentânea, modificável (1991, p. 368).

Foi a partir de Platão que rytmós passou a delimitar o que hoje é entendido como ritmo. Platão partiu da definição largamente usada e a trouxe para exemplificar uma “forma do movimento que o corpo humano executa na dança, e à disposição das figuras nas quais se resolve esse movimento” (1991, p. 368). Benveniste atribui ao pensador o que ele chama de uma circunstância decisiva: “a noção de um rytmós corporal associado ao metron e submetido à lei dos números; essa ‘forma' é, a partir de então, determinada por uma ‘medida' e sujeita a uma ordem” (1991, p. 369).

O escritor e musicólogo Mário de Andrade, em Pequena História da Música, ao falar do ritmo em suas manifestações primigênias, usa a sua significação tal como ela foi entendida a partir de Platão e como ela é até hoje, associada a um intervalo de tempo regular no ataque do som. Mário de Andrade afirma que

"os elementos formais da música, o som e o ritmo, são tão velhos quanto o homem. Esse os possui em si mesmo, porque os movimentos do coração, o ato de respirar já são elementos rítmicos, o passo já organiza um ritmo, as mãos percutindo já podem determinar todos os elementos do ritmo. E a voz produz o som" (1987, p. 12).

O escritor atribui ao ritmo uma qualidade dinamogênica que age diretamente no homem sem que haja qualquer filtro da consciência. O ritmo no homem é o próprio pulsar vital de seu corpo. Para Mário de Andrade, essa noção é muito clara nos povos considerados primitivos. “O corpo é, para os primitivos, uma espécie de primeira consciência, uma inteligência física de maravilhosa acuidade” (1987, p. 16), diz o escritor. A manifestação do ritmo nos corpos, neste caso, reverbera coletivamente, promovendo socializações em torno da música. Mário de Andrade, descrevendo a musicalidade desses povos, diz que seus instrumentos são ruidosos, pouco melódicos, ao promoverem suas vibrações na medida em que são golpeados. Os sons emitidos dessa forma não têm altura fixa, não se sustentam, não se prolongam e tampouco se ligam a outros subseqüentes. Para o escritor, música assim, “predominantemente rítmica, muito pouco melodiosa, socialística e estreitamente interessada, no geral monótona”, por ser refratária à cadência abstrata da reflexão, propicia “os efeitos mágicos da encantação” (1987, p. 17).

Mário de Andrade, ao discorrer sobre a música da Antigüidade, aponta que nessa fase da história do Ocidente já existe o que pode ser chamado de uma arte musical. Nesse contexto é que se insere a Grécia dos aedos, cantores que se acompanhavam com a lira de quatro cordas, dos nomoi, cantados com acompanhamento das apolíneas cítaras (instrumentos de cordas), e dos ditirambos, entoados com o auxílio dos aulos (instrumentos de sopros). O helenista Carl Kerényi, ao falar dos ditirambos, cânticos em homenagem ao surgimento do deus Dioniso, como a música dos festivais atenienses, relata: “No ditirambo, canta-se o deus recém-nascido após um parto demorado. ‘Ditirambo' era um dos nomes do próprio Dioniso, nome que foi dado ao gênero de cântico coral” (2005, p. 262). “Arquíloco, o mais antigo compositor de ditirambos conhecido, confessou que sabia como cantar o ditirambo tão logo o vinho lhe abalava a mente com seu raio”, diz Kerényi. Capaz de proporcionar efeitos de transe, a música cultuada pelos gregos, tida como “um donativo especial das divindades” (1987, p. 24), era intimamente ligada à poesia e à dança. Diz Mário de Andrade que “o compositor grego era ao mesmo tempo cantor, poeta e dançarino. As músicas continham texto e expressão coreográfica” (1987, p. 28).

A palavra grega harmonía “significa precisamente 'junção das partes'” (BRANDÃO, 1988, p. 147). Platão, no diálogo Leis, já se referia à harmonia no contexto da música como a “ordem da voz na qual o agudo e o grave se fundem, e à união dos dois se chama arte vocal” (apud BENVENISTE, 1991, p. 369). Em A República, a harmonia aparece como união dos sons no sentido de uma alternância, idêntica à noção atual de uma escala musical. No Livro III desse diálogo há uma passagem em que Sócrates e o músico Glauco avaliam a melhor harmonia para ser utilizada na educação musical dos cidadãos. Conclui-se que as harmonias plangentes, como a lídia mista e a aguda, deveriam ser suprimidas por  provocarem a embriaguez e a indolência. As lassas, a jônica e a lídia, também teriam que ser deixadas de lado, por serem efeminadas. Apenas duas deveriam permanecer: a que imita a entonação de um guerreiro em uma violenta batalha e a que clama no homem pelo voluntarismo e pela moderação. Dessa forma ideal, só seria possível a propagação de músicas que inspirassem valentia ou temperança. Os instrumentos usados seriam apenas a cítara e a lira, sendo que nos campos ainda admitir-se-ia o pífaro. Censuradas estariam as flautas, por serem capazes de reproduzir todos os tipos de harmonias. O ritmo, por sua vez, não deveria variar muito, pois o movimento de sua cadência teria que exprimir para o cidadão “uma vida regulada e corajosa” (2000, p. 93). Ritmos que supostamente “convêm à baixeza, à insolência, à loucura e aos outros vícios” (2000, p. 93) deveriam ser imediatamente esquecidos.

Sócrates assim estabelece uma distinção fundamental entre dois tipos de música: a que deve ser proibida por estar ligada a um comportamento desajuizado e a que é permitida por ser considerada de utilidade pública para os cidadãos. A boa música, para o pensador, deve estar sempre ligada às idéias do bem e do belo. Nessa cisão, se evidencia a opção pela permanência do equilíbrio formal da música apolínea, representada pelas cítaras e liras, e a exclusão da expansiva música dionisíaca, das sonoras flautas ou dos aulos. Sócrates acredita, com suas idéias, purificar a pólis e retirá-la da languidez provocada pelas cerimônias extáticas e altissonantes que homenageiam o deus Dioniso. No seu projeto de sua cidade ideal, assistida e governada pelos filósofos, o pensador afirma que “a educação musical é a parte principal da educação, porque o ritmo e a harmonia têm o grande poder de penetrar na alma e tocá-la fortemente, levando com eles a graça e cortejando-a, quando se foi bem educado” (2000, p. 95). Nesse modelo idealizado, os músicos são vistos como guardiãs morais e a eles cabe “reconhecer as formas de moderação, da coragem, da generosidade, da grandeza de alma, das virtudes suas irmãs e dos vícios contrários” (2000, p. 96). Para Sócrates, a música unida à poesia tem sempre que se submeter ao dizeres do texto. Os elementos musicais, o ritmo, a harmonia e a melodia, têm que se adequar às palavras e nunca o contrário. José Miguel Wisnik, no seu livro “O Som e o Sentido”, comenta:

"Concebida como o próprio elemento regulador do equilíbrio cósmico que se realiza no equilíbrio social, a música é ambivalentemente um poder agregador, centrípeto, de grande utilidade pedagógica na formação do cidadão adequado à harmonia da pólis e, ao mesmo tempo um poder dissolvente, desagregador, centrífugo, capaz de pôr a perder a ordem social" (2000, p. 93).

No final do diálogo A República, no Livro X, Sócrates, ao mencionar as recompensas dadas aos homens bons pela justiça divina após a morte, relata a Glauco a estória de Er, o guerreiro que faleceu em uma batalha e milagrosamente ressuscitou dez dias depois. Sendo autorizado por imortais juízes, Er percorreu os confins do além para que pudesse voltar e contar onde esteve e o que viu. Entre tantas imagens extraordinárias das almas de homens terríveis pagando pelas suas iniquidades e de outras, daqueles que foram virtuosos em vida, celebrando as belas visões celestes, Er diz ter observado nas extremidades do céu uma configuração espacial em que oito esferas se equilibravam, girando com o auxílio da Necessidade. As esferas formavam oito círculos luminosos e moventes. No alto de cada um se encontrava uma Sereia, emitindo uma única nota. Uma harmonia celeste se ajustava nesse arranjo, onde ainda três outras mulheres, sentadas em seus respectivos tronos, “acompanhando a Harmonia das Sereias” (2000, p. 349), também cantavam. Eram as Moiras, as três filhas da Necessidade: Láquesis, a que canta o passado; Cloto, o presente; e Átropo, o futuro. Contou Er que, ao lado das três mulheres, um hierofante se fazia responsável por conduzir as almas dos mortos para a sufocante Planície de Lete, onde as almas bebiam a água do rio Ameles para que pudessem se esquecer de quase tudo que haviam presenciado, tanto na vida quanto na morte. As almas errantes, que ali bebessem mais do que lhes cabia, se destinariam a cair na ignorância de um total esquecimento. Porém, a Er, que acompanhara todos movimentos do cortejo das almas, não fora permitido beber a água. Para a sua surpresa, um trovão ruidoso, seguido de um intenso tremor, subitamente lançou as almas em uma nova vida terrestre, totalmente distinta da que porventura haviam perdido. Imediatamente após o momento da sua reencarnação, o guerreiro acordou em seu próprio corpo.

Platão, a partir do relato extraordinário das imagens presenciadas por Er, une seu pensamento a uma alegoria mítica numa armação em que o giro das esferas e o canto das sereias simbolizam conjuntamente os planetas e as notas da escala musical. Um cenário onde se conjugam as forças temporais das Moiras, que governam os destinos das almas, e os poderes de iniciação e de adivinhação de um hierofante. A imagem platônica da perfeição celestial a partir do arranjo sonoro das esferas é a metáfora ideal para a música. Corresponde ao tempo circular e irrevogável de uma harmonia infinita, cuja influência na constituição da pólis é demarcada pela beleza das reminiscências eternas. Música das alturas que se identifica com as vibrações de uma plenitude que é somente encontrada nas regiões supracelestes.

O mito de Er diz que as almas, antes de retornarem à vida, presenciam um grandioso espetáculo visual e sonoro e que, ao beberem a água do esquecimento, apagam de sua a memória quase tudo o que foi visto. Esse esquecer-se de quase tudo, necessário para a reencarnação das almas na Terra, deixa em uma nova vida a vaga possibilidade da lembrança dessas visões e das audições celestiais. Fonte de analogias, o mito de Er, relatado por Sócrates, é modelar. Um princípio universal que, associado à ordem numérica da Escola Pitagórica, alicerçou com firmeza as associações aritméticas, geométricas e até astronômicas, bastante sistemáticas para o pensamento e a prática musical posterior. Wisnik afirma que, nesse sentido, “o modelo da harmonia das esferas aspira para a música uma permanência sem acidentes nem desvios (ou transformações), e supõe que a escala (ideal) seja praticada sob estrita observância, sem deslizamento da norma” (2000, p. 93).

Na Europa medieval, sob o domínio musical da Igreja Católica, cujos dogmas foram bastante influenciados pelas doutrinas neoplatônicas, o culto ao ritmo, que nutria culturas dançarinas como a grega, deu lugar a uma música essencialmente melódica. Mário de Andrade afirma que houve uma “preponderância sutil e condescendente da melodia” (1987, p. 34) que embalou a cristandade durante muitos séculos. O escritor relaciona as vibrações da música vocalizada do canto gregoriano com os ideais de purificação e elevação da alma derivados do platonismo e buscados pela Igreja. Para Wisnik “o canto gregoriano é um herdeiro, neoplatônico, da harmonia das esferas” (2000, p. 96). Nele, com a conseqüente supremacia melódica, privilegia-se uma “música que se desenvolve no plano das alturas, negando o ritmo recorrente e as estruturas simétricas da canção popular para fluir estaticamente sobre o seu leito de sílabas sonoras, evoluindo sob o arco dos seus desenhos melódicos” (2000, p. 97).

Ambulantes, os bardos medievais, às margens do sistema clerical,  por volta do século XI, eram os legítimos portadores da tradição grega dos aedos Tempos depois, com o surgimento do Humanismo e o conseqüente mergulho do homem no estudo das artes do período da Antiguidade Clássica, houve uma crescente busca de diversos valores esquecidos pela civilização cristã. A antiga Grécia, pré-filosófica, dos mitos e de suas múltiplas divindades, voltou a inspirar os caminhos da arte e do pensamento. Músicos, acompanhados de alaúdes, címbalos e harpas, retomaram com força a figura dos cantores poetas. No século XVI, ocorreu um intenso movimento da canção popular, possibilitando um significativo retorno da importância social do ritmo e o florescimento de novas concepções sonoras, como a aceitação e a utilização da dissonância e do trítono. Foi no período denominado de Renascença, com a consolidação da polifonia, recurso estilístico há séculos já sendo utilizado, que pela primeira vez aparece o uso cadenciado de acordes, semelhante ao que hoje é chamado conceitualmente de uma estrutura harmônica. Na Itália, mais precisamente nos madrigais renascentistas de Veneza, passa-se a formar linhas de acordes com três notas nos alaúdes para o acompanhamento dos cantores. O alaúde, instrumento polifônico similar ao violão, bastante familiar nos séculos XV e XVI, segundo Mário de Andrade, se converte em um “convite constante à harmonia” (1987, p. 70). Com os encadeamentos dissonantes e consonantes de tensão e repouso, a prática musical ganha novos horizontes por meio de uma “dialética permanente da instabilidade e estabilidade” (2000, p. 101). A fixidez tonal da harmonia das esferas, característica marcante do cantochão, é substituída pelas relações móveis de tonalidade. No século XVII, finalmente, a harmonia se estabelece como uma técnica laica de amplas possibilidades, inaugurando uma nova e duradoura fase na história da música ocidental. Durante séculos de grandes compositores, com suas magníficas obras-primas, entre crises e revoluções sociais e políticas, em meio a mutações e sofisticações das formas musicais e dos ideais artísticos, o mundo ocidental se valeu e ainda se vale desse momento histórico da música. No século XX, porém, com a rebeldia venturosa de diversos compositores, foram postas em cheque muitas crenças em torno dessa estruturação harmônica. Acontece que quase todas as mudanças e experimentações se deram a partir da sua própria concepção.

Se na história da música ocidental, em sua determinação cronológica, o ritmo é considerado o mais antigo elemento e a harmonia o mais recente, a melodia, talvez por ser o mais próximo das implicações emotivas da fala humana, é que geralmente assume o maior destaque. Melodia, que provém do grego mélos, que significa “membro, articulação” (HOUAISS, 2001), assim se define, segundo as palavras do Dicionário Grove de Música: “Uma série de notas musicais dispostas em sucessão, num determinado padrão rítmico, para formar uma unidade identificável” (SADIE, 1994, p. 592). O dicionário assim descreve a dependência mútua dos elementos musicais:

Melodia, ritmo e harmonia são considerados os três elementos fundamentais da música; encará-los como independentes, porém, seria uma simplificação excessiva. O ritmo é componente importante da própria melodia não apenas porque cada nota tem uma duração, mas também porque a articulação rítmica numa escala mais ampla lhe dá forma e vitalidade; por outro lado, a harmonia geralmente desempenha papel essencial, ao menos na música ocidental, na determinação do contorno e na direção de uma linha melódica, cujas implicações harmônicas podem, por sua vez, dar vida à melodia (1994, p. 592).

Nota-se no texto transcrito do dicionário que, conceitualmente, a melodia assume mais importância do que os outros elementos musicais. Ao tratá-los em uma correlação de forças, Sadie demonstra claramente uma subordinação da harmonia e do ritmo aos caprichos dos contornos melódicos. Para o senso comum ocorre o mesmo. O interesse do ouvinte, na maioria dos casos, primeiro atende aos seus apelos. A atitude de ouvir música é, em geral, entendida como o sinônimo de seguir uma melodia. Embora existam exceções consideráveis, ocorridas em muitas obras, e até movimentos contrários à sua preponderância psicológica, a melodia quase sempre é o elemento mais característico para o reconhecimento e a memorização de uma determinada música.

O trompista da Orquestra do Teatro Nacional de Brasília e professor de Teoria Musical da UNB, Bohumil Med, apresentou em seu livro Teoria da Música uma definição didaticamente resumida sobre a arte musical, compreendida apenas em sua dimensão técnica: “Música é a arte de combinar os sons simultânea e sucessivamente, com ordem, equilíbrio e proporção dentro do tempo” (1996, p. 97). Nesse livro, destinado à iniciação musical, lê-se que a harmonia para os músicos está ligada a uma concepção vertical, isto é, os sons são “dispostos em uma ordem simultânea” (1996, p. 11), desse modo, produzindo efeitos diversos, ora consonantes ora dissonantes. Às sensações imediatas desses efeitos são atribuídas metáforas. Diz Med: “A consonância proporciona uma sensação de repouso e estabilidade” (1996, p. 97), enquanto que a dissonância sugere “movimento e tensão” (1996, p. 97). A melodia, por sua vez, sendo ocorrência sucessiva dos sons, é ligada a uma concepção horizontal. Comumente a ela se atribui ser o discurso da música. Quando esse discurso é feito por mais de uma voz, há que se considerar também o contraponto, que é o nome dado ao efeito produzido por melodias diferentes, quando tocadas ou ouvidas ao mesmo tempo. Para Med, o contraponto abrange a verticalidade e a horizontalidade na música. E o ritmo? Pertencem à instância convencionada do ritmo as idéias de ordem, equilíbrio e proporção em que sons harmônicos e melódicos se dispõem. O ritmo, considerado a parte mais elementar da música, é ligado a uma concepção matemática do tempo. Esses conceitos, há muito tempo aceitos e difundidos pelos que estudam música através de sua escrita, permanecem como tais em seu acabamento exemplar. Os músicos aprendem e os apreendem enquanto recursos técnicos. No entanto, é comum ouvir dos mesmos que a verdade de fazer música independe deles.

Mário de Andrade observou que, ao longo do desenvolvimento da música ocidental, sua apreensão se tornou muito mais espacial e muito menos temporal. O escritor, ao falar sobre as tendências artísticas do início do século XX, enunciou que seria preciso retomar na música sua temporalidade, ou seja, ela deveria ser produzida de maneira muito mais ativa, sendo basicamente rítmica, e não apenas reunida em abstrações representacionais que a preparam para ser decifrada posteriormente.

Ao acenar para uma perspectiva que libertasse a secular arte musical das convenções estabelecidas, Mário de Andrade afirmou que só assim “a compreensão da obra resultará mais duma saudade, dum desejo de tornar a escutá-la, que da relembrança contemplativa que fixa as partes, evoca, compara o que passou com o que está passando, reconstrói, fixa e julga. A relembrança pensa. A saudade sente” (1987, p. 200). O escritor defendeu a vigência de uma música que acontecesse concretamente e sensivelmente no tempo. A música do passado, para Andrade, se reduz a uma mera abstração, enquanto que a do presente, realizada na plenitude de um agora dinâmico, se faz palpável em sua espontânea vibração. A maior prova disso é a revalorização do timbre e da intensidade. Qualquer que seja sua intenção formuladora, a música se apresenta sempre concreta, por ser “puro movimento sonoro no tempo” (1987, p. 302). O escritor defendeu que a invenção deve sempre anteceder a concepção formal. A submissão aos modelos já estabelecidos, pertencentes aos consagrados cânones musicais, para o escritor, provoca um esgotamento das possibilidades inventivas. O uso corrente de formas pré-fixadas, na sua visão, facilita a criação musical na mesma medida em que a prende e a subjuga a padrões pré-concebidos.

Se por um lado soa pertinente para alguns estudiosos situar as teses de Mário de Andrade como resultantes de uma atmosfera específica de discussões apaixonadas em torno das diversas pretensões criadoras do Movimento Modernista, por outro é possível crer que o seu questionamento não se encerra nesse contexto. Andrade, ao relacionar o diálogo dos desdobramentos formativos e conceituais da literatura musical com o operar da música enquanto tensão entre realização e memória, toca nas questões que envolvem a escrita musical na medida em que, sob sua vigência técnica, se formaram os inúmeros conceitos que, durante muitos séculos, ordenaram o discurso musical do ocidente. Predominância histórica que foi bastante salutar para o entendimento comum da música e a preservação de suas manifestações mais significativas, situadas não só no contexto letrado das obras de arte como também no seio de uma tradição popular e oral. No Brasil, convém mencionar, perpetuada pela grafia do próprio escritor.

No Fedro, Platão coloca a questão fundamental da escrita. Sócrates, ao narrar a invenção do alfabeto, recorre a uma fábula acontecida no antigo Egito. Trata-se da estória do deus Thot, “o primeiro a descobrir os números e o cálculo, a geometria e a astronomia, o jogo de gamão e dos dados, e também os caracteres da escrita” (1975, p. 92). Thot apresentou todas essas artes a Tamuz, que reinava naquele país. Sobre a escrita, o deus contou ao Rei que seria “uma disciplina capaz de deixar os egípcios mais sábios e com melhor memória” (1975, p. 92). Thot lhe disse que trazia consigo “o remédio para o esquecimento e a ignorância” (1975, p. 92). No entanto, Tamuz, diante da engenhosidade do deus, argumentou que esta atribuição, dada pela divindade à escrita, seria oposta ao que realmente ela seria capaz de proporcionar. O Rei afirmou que a escrita é “bastante idônea para levar o esquecimento à alma de quem aprende pelo fato de não obrigá-lo ao exercício da memória” (1975, p. 92). Dirigindo suas palavras ao deus, sentenciou:

Confiante na escrita, será por meios externos, com a ajuda de caracteres estranhos, não no próprio íntimo e graças a eles mesmos, que passarão a despertar suas reminiscências. Não descobriste o remédio para a memória, mas apenas para a lembrança. O que ofereces aos que estudam é simples aparência do saber, não a própria realidade. Depois de ouvirem um mundo de coisas, sem nada terem aprendido, considerar-se-ão ultra-sábios, quando na grande maioria, não passam de ignorantões, pseudo-sábios, simplesmente não sábios de verdade (1975, ps. 92 e 93).

Se na fábula contada, com o diálogo de Thot e Tamuz, já estão postas em evidência as vantagens e desvantagens da escrita, Sócrates, conversando com Fedro, vai mais além. Ao advertir sobre as limitações dessa magna arte, diz que se perguntarmos algo às escrituras, elas só responderão “de um único modo e sempre a mesma coisa” (1975, p. 94). Como saída, porém, Sócrates relaciona a fábula referida com os fundamentos da doutrina platônica, ao recomendar que o uso da escrita seja somente destinado ao “homem que dispuser do conhecimento do justo, do belo e do bom” (1975, p. 94). Assim, para o pensador, apenas se autorizariam como legítimos os escritos que estivessem de acordo com um conhecimento nascido nas reminiscências da alma de quem os pronuncia.

Na fábula, o Rei questiona a escrita. Sócrates, por sua vez, reconhece como legítimo o seu discurso, ao concordar que realmente há nela algo perigoso. Se o perigo para o Rei seria a perda do exercício da memória, para Sócrates consistiria na possibilidade da legitimação de prováveis não-verdades. O comum para ambos é que não há como negar a importância dessa arte mágica, inventada por Thot, a divindade egípcia. O antídoto socrático (ou platônico) para o mal que possa ocorrer pela larga difusão de maus escritos é a recomendação de que a arte de escrever seja utilizada apenas por alguns privilegiados, ou seja, somente pelos que, segundo o pensamento platônico, ascenderam à possibilidade de uma contemplação metafísica de verdades imutáveis.

Quando o Rei, em seu discurso, se refere à memória, está de acordo com Sócrates, ao falar de uma memória de um além-mundo? Há nesta questão uma encruzilhada. A memória, tida como originária, que no mito é a deusa Mnemosyne, a mãe das musas, se atém num princípio gerador que se articula em um indeterminado porvir criativo. Para ser memória, ela tem que contar com o esquecimento de algo já encaminhado, de um modo que só é possível se lembrar do que se esquece. A memória platônica, ao sugerir as reminiscências de um saber determinado e determinante, conduz a uma reviravolta paradigmática. A verdade que dela advém deixa de ser uma revelação e passa a ser aferida pela correspondência a uma outra, encontrada alhures, num lugar onde as almas destituídas de seus corpos terrestres contemplam a perfeição de um conhecimento cristalizado. Nem seria preciso conhecer a história ulterior para entender que daí se está apenas um passo do conceito universal ou até mesmo do dogma.

E a escrita musical? Se a origem da música é indeterminada, a de sua escrita prescreve um início historiográfico. O Dicionário Grove de Música relata que, em 500 a.C., os gregos já possuíam um sistema de notação musical, ou seja, “um equivalente visual do som musical, que se pretende um registro do som ouvido ou imaginado, ou um conjunto de instruções visuais para intérpretes” (1994, p. 656). A escrita, ou a notação musical, como é hoje adotada universalmente, foi desenvolvida durante muitos séculos. “Até o século XI a altura era a única característica grafada. No século XII, inicia-se a definição da duração. O timbre começa a ser indicado a partir do século XVI e a intensidade, a partir do século XVII” (1996, p. 13), como informa Bohumil Med. A pauta, “conjunto de linhas em que, nos interstícios sobre, acima e abaixo delas, escrevem-se notas musicais” (SADIE, 1994, p. 707), originalmente utilizada no cantochão, existe desde o século IX. O pentagrama, ou a pauta de cinco linhas, sistema padrão para a notação musical no Ocidente, é usado desde o século XVIII.

Escrever e ler na pauta passou a ser a condição civilizadora de uma sólida educação musical. No entanto, sua preponderância não é unânime. O músico e compositor John Cage, em uma conferência realizada na Juilliard School of Music, quando discursou acompanhado pelo piano de David Tudor, sem que na hora sequer soubesse o que o pianista iria tocar, afirmou: “Enquanto se estuda música, as coisas ficam um pouco confusas. Sons já não são só sons, mas são símbolos” (1985, p. 96). A confusão que o músico se referiu consiste na constatação de que os sons estariam sendo produzidos mais para serem vistos e menos para serem ouvidos. “Se um som tiver a desgraça de não ter um símbolo ou se ele parecer complexo demais, é ejectado do sistema: é um ruído ou não-musical” (1985, p. 97), afirmou. Cage, ao reclamar um caminho diferente para o estudo e a produção musical, questionou a interposição mediadora que se dá na relação entre o músico e a notação musical. Na conferência, o músico criticou a tradição musical do Ocidente, excessivamente amparada pelo individualismo de seus compositores. Cage observou que o compositor, nesse contexto, aparece como uma figura autoritária, alguém que sempre diz o que se deve ou não se deve fazer. O músico pregava que a criação musical deveria definitivamente se voltar para as instâncias da indeterminação e do acaso. Inspirado pelo Zen-Budismo, pelo Livro das Mutações – I Ching – , e pelo pensamento místico de Mestre Eckhart, Cage sonhava “eliminar todos os pensamentos que separam a música da vida” (1985, p. 97). O músico advertiu para os estudantes de Juilliard que: “Há todo o tempo do mundo para estudar música, mas para viver não há quase tempo nenhum. Porque viver ocorre a cada instante e esse instante está sempre mudando” (1985, p. 98). “A coisa mais sensata a fazer é abrir os ouvidos imediatamente e ouvir um som de repente antes que o pensamento tenha a chance de transformá-lo em algo lógico, abstrato ou simbólico” (1985, p. 98), aconselhou.

BIBLIOGRAFIA

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PLATÃO. A República . Tradução de Enrico Corvisieri. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 2000.
------------- Diálogos – Vol. V. Fedro – Cartas – O Primeiro Alcibíades. Tradução de Carlos Alberto Nunes. Belém: UFPA, 1975.
SADIE, Stanley. Dicionário Grove de Música (Edição Concisa). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1994.
WISNIK, José Miguel. O Som e o Sentido: Uma Outra História das Músicas. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

Publicado na Revista Garrafa (PPCL/UFRJ. Online), v.9, 2006

A ALQUIMIA DO SILÊNCIO

Há o silêncio sem notas na composição musical, tal qual é entendido na prática e na literatura musical do ocidente: a pausa. Não é o silêncio de uma ausência, pois a pausa é a presença positiva do silêncio. Tanto que na escrita musical é representada por sinais, conforme sua duração, no instante em que não há som, mas no qual se percebe algo presente que configura um discurso entre as notas. E, mesmo nas notas, há silêncios. Como afirma José Miguel Wisnik, em seu livro O Som e o Sentido: “O som é presença e ausência, e está, por menos que isso apareça, permeado de silêncio” (1989, p. 16). O contrário também se faz verdadeiro. Wisnik alude a experiência do compositor norte-americano John Cage que, isolado de todo ruído externo, ao se trancar em uma redoma silenciosa, passou a ouvir ruidosamente os sons de seu próprio corpo, “o som grave da nossa pulsação sanguínea e o som agudo do nosso sistema nervoso” (1989, p. 16).

O som confere sentido ao homem que lhe empresta os ouvidos. O homem simplesmente o escuta, ou melhor, ausculta. Nessa doação, som e homem se fundem. Unificam-se pela linguagem e na linguagem.

Perguntamos: não há som sem silêncio? O silêncio é a ausência do som? Há silêncio sem som? O silêncio pode ser visto e ouvido como o contrário do som? Onde não há som? O silêncio suscita questões e por elas tentamos caminhar. 

Alberto, o Grande, ou Albertus Magnus, o discípulo de Tomás de Aquino que se tornou Bispo de Ratisbona, na Alemanha, tornou-se conhecido por ter realizado vários tratados sobre Alquimia. Entre seus escritos, encontram-se alguns breves conselhos aos iniciantes na arte alquímica. O primeiro deles assim começa: “Deve o alquimista ser silencioso, discreto” (apud FLAMEL, 1973, p. 27). Se a arte do alquimista é uma doação resultante de uma solitária e paciente permanência, de modo semelhante sucedeu-se o procedimento criativo do escritor Guimarães Rosa. O escritor certa vez afirmou que só empregava uma palavra após um bom tempo de obscura elaboração. Assim, o vislumbre do método de Rosa estabelece um paralelo com a Alquimia, a arte de cura e da purificação que exige um lento processo interior para alcançar seus fins. Em Rosa, o tempo de uma elaboração silenciosa, num movimento sem pressa, faz-se necessário para que se evidencie o sentido mais próprio da linguagem. O escritor, ao dialogar com o crítico literário Gunter Lorenz, fala de um percurso silencioso de sua escrita, que se vale de um “método que implica na utilização de cada palavra como se ela tivesse acabado de nascer” (1983, p. 81). Gestação de mundo através da palavra a ser criada. Som que surge do recolhimento. Luz que emana da obscuridade de um ainda não-nascido.


A obra de Rosa nos aparece altamente sonora e, como tal, refletora de toda uma escuta atenta. Em “Buriti”, uma das sete novelas do Corpo de Baile, enigmaticamente lê-se: “No silêncio nunca há silêncio” (1969, p. 134). Na obra, a música silenciosa das palavras é o seu ouvir formador. O escritor mostra um Brasil ainda não tocado pela modernização que se iniciou nos anos 50 e radicalizou-se no fim do Século XX. Os ouvidos e olhos dos Gerais de Rosa, ainda não adeptos da hipnótica máquina televisiva implantada pelo modelo desenvolvimentista brasileiro dos últimos 60 anos, sugerem um tipo peculiar de experiência sensorial. 

Em meio a tantos sons e silêncios dos sertões e veredas de Rosa, são as trevas da noite que possibilitam que nossa compreensão alcance seus pontos de luminosidade. O pensamento surge como a pequenina luz que emana das lonjuras das veredas do Buriti-Bom, indicando que ali deve haver vida humana, uma só luz que se mostra, assim como a palavra esclarecedora, que ilumina o silêncio ao nascer. Palavra que revela o real ao realizar-se no seu próprio espaço e no seu próprio tempo de Ser, se retraindo no silêncio, agora necessário para que haja um novo dizer. Som e silêncio, pólos contrários que se harmonizam, se presentificando e se ocultando em contínuo movimento. Um não sendo sem o outro. Um precisando do outro. Ambos coexistindo numa relação de mútuo pertencimento.

Emmanuel Carneiro Leão, na conferência “O Silêncio da Fala”, coloca em questão o que é o silêncio. O pensador nos adverte sobre a impossibilidade de se falar do silêncio e de permanecer sob sua vigência. Pois tudo o que se fala ou se escreve tem como ponto de partida o próprio silêncio. Ao se tornar fala, o próprio silêncio deixa imediatamente de ser silêncio. Ao abrigar o vigor das realizações que fundam o real, o silêncio tem em si toda a possibilidade da existência criadora do homem. “É no silêncio que os homens, os poetas e os pensadores dão passagem em tudo o que dizem quando falam e se calam em cada desempenho” (1992, p. 24), afirma Leão. O recolhimento silencioso permite não apenas a escuta, mas a autoescuta. Para o pensador, o silêncio é o que propicia a convivência e a aprendizagem humana. É nele que sempre se está e se descobre o que se é.

Numa conferência intitulada “O Silêncio da Filosofia”, o professor Hans Ruin, da Universidade de Estocolmo, discorreu sobre dois silêncios. Um que é o modo próprio e peculiar de dizer da linguagem e outro que preserva a abertura para o Ser. O silêncio que é discurso aponta para “alguém que quer se fazer compreender de maneira mais autêntica precisamente por guardar silêncio” (1996, p. 19). O outro, fundado no Ser, é como uma estranha recusa, um cessar de todo e qualquer ruído interferente. Um silenciar taciturno que, ao ser experimentado, prepara um novo começo para o homem, podendo, com isso, propiciar uma nova articulação de pensamento ainda desconhecida. Silêncio solitário que permite que a experiência poética originária aconteça.

O silêncio é necessário também para que o homem, através da escuta comunitária, possa existir com os outros. Ruin afirma que compreender o silêncio do outro é o mesmo que aprender a acompanhar seus movimentos, como alguém que segue uma nova e desconhecida melodia. E mais: “Neste sentido, aprender alguma coisa do outro é aprender a ouvir o seu silêncio e, ainda mais profundamente, aprender a ficar em silêncio com o outro (1996, p. 15).

É preciso, portanto, silenciar diante do mundo para apreendê-lo. Só assim se pode corresponder aos seus estímulos. A escuta do mundo se realiza silenciando-se e a autoescuta a recria permanentemente. A compreensão que se dá através desse recolhimento silencioso e meditativo propicia o abrigo da voz nas profundezas do Ser enquanto memória. A voz esquecida que, ao ser tocada, emerge da memória e a atualiza. Uma disposição desveladora se inaugura a partir do silente quando soa a voz humana carregada de sentido. O silêncio se retrai ao evocar a palavra e acolher a fala.

Gilvan Fogel, na conferência “A respeito do fazer necessário e inútil ou do silêncio”, pensa o silêncio a partir do poder de criação no homem. Fogel diz que “um homem de silêncio é um homem de ocupação, de tarefa própria” (1996, p. 41). Esse homem tem em sua ocupação uma íntima relação com o seu destino e à sua solidão. Esse ato inadiável de se ocupar é o lugar da liberdade de uma busca que se dá por uma escuta apropriada e apropriadora. Segundo Fogel, “escutar quer dizer: ser e estar disposto, segundo o modo de ser da própria coisa – afinado, afeiçoado com ela. Ainda: ser e estar numa disposição de acolhimento do ritmo, do pulso, da cadência, das modulações e reverberações da coisa” (FOGEL, 1996, p. 43). Esse modo musical e intransferível de estar com o agir mais próprio do homem faz com que haja uma total sintonia com o que é buscado, evidenciando assim uma postura íntegra nesse procedimento. Fogel fala desse agir como um “poder-ser que emerge e se instaura” (1996, p. 45) no tempo. Uma possibilidade que se dá a partir da experiência do agora, iluminada por um fazer que, ao manifestar-se, se integra ao tempo que é unicamente o tempo de Ser. O tempo como o “nome da cadência ou do ritmo do movimento da ação de poder-ser” (1996, p. 46) provém do instante imediato que, sendo instante dado, desde então, já não é o mesmo, e assim sucessivamente. No coração do mundo, o movimento silencioso do tempo se faz ritmo na pulsação dos viventes. Nas palavras de Fogel, “o tempo é a tessitura da repetição alterante, diversificante, de instante sobre instante” (1996, p. 46). Assim, a vida, em seu irradiar de instantes que se sucedem, toma para si o seu próprio pulso rítmico. No acordo desse silêncio do tempo e o seu destino, ao se libertar em sua tarefa radical, o homem se faz e se refaz no tempo de um agora vital. Assim, o tempo do homem é levado pelo instante por se encarregar dele. Fogel considera sem utilidade pragmática essa atitude indispensável de se ocupar do que é mais próprio, “uma vez que ela não tem a sua força geratriz ou o seu sentido fora do próprio movimento, fora da própria ação” (1996, p. 47). A ação é, portanto, em si e por si mesma. Não adia nem almeja retorno ou recompensa futura por já conter no âmago de sua manifestação o início, o meio e o fim. “Da alegria do seu fazer nasce e renasce a disposição e o apetite de fazer” (1996, p. 47), afirma Fogel. O homem, ao decidir e optar por esse desempenhar-se criativo, estará disposto ao encontro do seu próprio ser no tempo, isto é, do seu próprio destino. Em outras palavras, estará fazendo e perfazendo a sua própria história, moldando-a com a disposição de se suceder livremente, de acordo com as suas escolhas. Para Fogel, o homem que não opera suas realizações na conciliação de uma ação necessária não terá começo e nem tampouco fundação ou fincamento vital. Por isto mesmo, também não terá fim – “fim como meta e desfecho, como balanço na linha do abismo, que é o limiar do possível deixar de ser. Tal homem, na verdade, nem vive nem morre (1996, p. 48).

Para Fogel, a vigência do silêncio se confunde com esse modo de ser atravessado pela ação absolutamente indispensável. Nesse sentido, o silêncio no homem “se faz como escuta, quer dizer, como abandono atento, como entrega cuidadosa” (1996, p. 51) a tudo que envolve e orienta o seu agir criativo.

Os rumores externos, mesmo que ensurdecedores, não constituem obstáculo para esse homem de silêncio, que, através de sua tarefa, constrói o seu destino. O que pode desorientá-lo é a disritmia de sua própria revolta ou o seu aborrecimento em não acatar os seus próprios limites. A sanha, ao obstruir o silêncio recôndito e a possibilidade do homem poder realizar-se, a partir daí, poderá se converter em uma ira desmesurada ou num tédio revestido de melancolia. Tais estados de espírito são capazes de apagar definitivamente sua serenidade acolhedora e lançá-lo no “alheamento infernal da inexistência da ação própria e necessária” (1996, p. 54).

O homem de silêncio, pleno em sua ocupação, vem a ser desse modo, como o alquimista que Alberto, o Grande, sugeriu: “paciente, perseverante e assíduo até o fim” (apud FLAMEL, 1973, p. 17). Precisa "curar-se", isto é, estar com o seu coração limpo, leve, para que nele possa pulsar a força sutil de sua vitalidade criadora. Só assim o ritmo de suas realizações se converterá no sentido rosiano de uma Travessia e o tempo de sua vida se tornará um aliado de seu imprescindível e inadiável operar, mesmo que essencialmente inútil e desinteressado.


Referências bibliográficas:

CARNEIRO LEÃO, Emmanuel. Aprendendo a pensar II. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 1992.
FLAMEL, Nicolas. O livro das figuras hieroglíficas. Rio de Janeiro: Editora Três, 1973.
LORENZ, Gunter. “Diálogo com Guimarães Rosa”. In: COUTINHO, Afrânio. Coleção Fortuna Crítica. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira/Instituto Nacional do Livro, 1983.
ROSA, João Guimarães. Noites do Sertão. Rio de Janeiro: José Olympio, 1969.
RUIN, Hans; FOGEL, Gilvan; SCHUBACK, Márcia Sá Cavalcante: Por uma fenomenologia do silêncio. Rio de Janeiro: IFCS-UFRJ/ Sette Letras, 1996.
WISNIK, J. M. O Som e o Sentido: uma outra história das músicas. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

Publicado na Revista Olho d'água, UNESP. São José do Rio Preto, v.1, pp. 39 - 43, 2009.