quinta-feira, 2 de maio de 2013

A ALQUIMIA DO SILÊNCIO

Há o silêncio sem notas na composição musical, tal qual é entendido na prática e na literatura musical do ocidente: a pausa. Não é o silêncio de uma ausência, pois a pausa é a presença positiva do silêncio. Tanto que na escrita musical é representada por sinais, conforme sua duração, no instante em que não há som, mas no qual se percebe algo presente que configura um discurso entre as notas. E, mesmo nas notas, há silêncios. Como afirma José Miguel Wisnik, em seu livro O Som e o Sentido: “O som é presença e ausência, e está, por menos que isso apareça, permeado de silêncio” (1989, p. 16). O contrário também se faz verdadeiro. Wisnik alude a experiência do compositor norte-americano John Cage que, isolado de todo ruído externo, ao se trancar em uma redoma silenciosa, passou a ouvir ruidosamente os sons de seu próprio corpo, “o som grave da nossa pulsação sanguínea e o som agudo do nosso sistema nervoso” (1989, p. 16).

O som confere sentido ao homem que lhe empresta os ouvidos. O homem simplesmente o escuta, ou melhor, ausculta. Nessa doação, som e homem se fundem. Unificam-se pela linguagem e na linguagem.

Perguntamos: não há som sem silêncio? O silêncio é a ausência do som? Há silêncio sem som? O silêncio pode ser visto e ouvido como o contrário do som? Onde não há som? O silêncio suscita questões e por elas tentamos caminhar. 

Alberto, o Grande, ou Albertus Magnus, o discípulo de Tomás de Aquino que se tornou Bispo de Ratisbona, na Alemanha, tornou-se conhecido por ter realizado vários tratados sobre Alquimia. Entre seus escritos, encontram-se alguns breves conselhos aos iniciantes na arte alquímica. O primeiro deles assim começa: “Deve o alquimista ser silencioso, discreto” (apud FLAMEL, 1973, p. 27). Se a arte do alquimista é uma doação resultante de uma solitária e paciente permanência, de modo semelhante sucedeu-se o procedimento criativo do escritor Guimarães Rosa. O escritor certa vez afirmou que só empregava uma palavra após um bom tempo de obscura elaboração. Assim, o vislumbre do método de Rosa estabelece um paralelo com a Alquimia, a arte de cura e da purificação que exige um lento processo interior para alcançar seus fins. Em Rosa, o tempo de uma elaboração silenciosa, num movimento sem pressa, faz-se necessário para que se evidencie o sentido mais próprio da linguagem. O escritor, ao dialogar com o crítico literário Gunter Lorenz, fala de um percurso silencioso de sua escrita, que se vale de um “método que implica na utilização de cada palavra como se ela tivesse acabado de nascer” (1983, p. 81). Gestação de mundo através da palavra a ser criada. Som que surge do recolhimento. Luz que emana da obscuridade de um ainda não-nascido.


A obra de Rosa nos aparece altamente sonora e, como tal, refletora de toda uma escuta atenta. Em “Buriti”, uma das sete novelas do Corpo de Baile, enigmaticamente lê-se: “No silêncio nunca há silêncio” (1969, p. 134). Na obra, a música silenciosa das palavras é o seu ouvir formador. O escritor mostra um Brasil ainda não tocado pela modernização que se iniciou nos anos 50 e radicalizou-se no fim do Século XX. Os ouvidos e olhos dos Gerais de Rosa, ainda não adeptos da hipnótica máquina televisiva implantada pelo modelo desenvolvimentista brasileiro dos últimos 60 anos, sugerem um tipo peculiar de experiência sensorial. 

Em meio a tantos sons e silêncios dos sertões e veredas de Rosa, são as trevas da noite que possibilitam que nossa compreensão alcance seus pontos de luminosidade. O pensamento surge como a pequenina luz que emana das lonjuras das veredas do Buriti-Bom, indicando que ali deve haver vida humana, uma só luz que se mostra, assim como a palavra esclarecedora, que ilumina o silêncio ao nascer. Palavra que revela o real ao realizar-se no seu próprio espaço e no seu próprio tempo de Ser, se retraindo no silêncio, agora necessário para que haja um novo dizer. Som e silêncio, pólos contrários que se harmonizam, se presentificando e se ocultando em contínuo movimento. Um não sendo sem o outro. Um precisando do outro. Ambos coexistindo numa relação de mútuo pertencimento.

Emmanuel Carneiro Leão, na conferência “O Silêncio da Fala”, coloca em questão o que é o silêncio. O pensador nos adverte sobre a impossibilidade de se falar do silêncio e de permanecer sob sua vigência. Pois tudo o que se fala ou se escreve tem como ponto de partida o próprio silêncio. Ao se tornar fala, o próprio silêncio deixa imediatamente de ser silêncio. Ao abrigar o vigor das realizações que fundam o real, o silêncio tem em si toda a possibilidade da existência criadora do homem. “É no silêncio que os homens, os poetas e os pensadores dão passagem em tudo o que dizem quando falam e se calam em cada desempenho” (1992, p. 24), afirma Leão. O recolhimento silencioso permite não apenas a escuta, mas a autoescuta. Para o pensador, o silêncio é o que propicia a convivência e a aprendizagem humana. É nele que sempre se está e se descobre o que se é.

Numa conferência intitulada “O Silêncio da Filosofia”, o professor Hans Ruin, da Universidade de Estocolmo, discorreu sobre dois silêncios. Um que é o modo próprio e peculiar de dizer da linguagem e outro que preserva a abertura para o Ser. O silêncio que é discurso aponta para “alguém que quer se fazer compreender de maneira mais autêntica precisamente por guardar silêncio” (1996, p. 19). O outro, fundado no Ser, é como uma estranha recusa, um cessar de todo e qualquer ruído interferente. Um silenciar taciturno que, ao ser experimentado, prepara um novo começo para o homem, podendo, com isso, propiciar uma nova articulação de pensamento ainda desconhecida. Silêncio solitário que permite que a experiência poética originária aconteça.

O silêncio é necessário também para que o homem, através da escuta comunitária, possa existir com os outros. Ruin afirma que compreender o silêncio do outro é o mesmo que aprender a acompanhar seus movimentos, como alguém que segue uma nova e desconhecida melodia. E mais: “Neste sentido, aprender alguma coisa do outro é aprender a ouvir o seu silêncio e, ainda mais profundamente, aprender a ficar em silêncio com o outro (1996, p. 15).

É preciso, portanto, silenciar diante do mundo para apreendê-lo. Só assim se pode corresponder aos seus estímulos. A escuta do mundo se realiza silenciando-se e a autoescuta a recria permanentemente. A compreensão que se dá através desse recolhimento silencioso e meditativo propicia o abrigo da voz nas profundezas do Ser enquanto memória. A voz esquecida que, ao ser tocada, emerge da memória e a atualiza. Uma disposição desveladora se inaugura a partir do silente quando soa a voz humana carregada de sentido. O silêncio se retrai ao evocar a palavra e acolher a fala.

Gilvan Fogel, na conferência “A respeito do fazer necessário e inútil ou do silêncio”, pensa o silêncio a partir do poder de criação no homem. Fogel diz que “um homem de silêncio é um homem de ocupação, de tarefa própria” (1996, p. 41). Esse homem tem em sua ocupação uma íntima relação com o seu destino e à sua solidão. Esse ato inadiável de se ocupar é o lugar da liberdade de uma busca que se dá por uma escuta apropriada e apropriadora. Segundo Fogel, “escutar quer dizer: ser e estar disposto, segundo o modo de ser da própria coisa – afinado, afeiçoado com ela. Ainda: ser e estar numa disposição de acolhimento do ritmo, do pulso, da cadência, das modulações e reverberações da coisa” (FOGEL, 1996, p. 43). Esse modo musical e intransferível de estar com o agir mais próprio do homem faz com que haja uma total sintonia com o que é buscado, evidenciando assim uma postura íntegra nesse procedimento. Fogel fala desse agir como um “poder-ser que emerge e se instaura” (1996, p. 45) no tempo. Uma possibilidade que se dá a partir da experiência do agora, iluminada por um fazer que, ao manifestar-se, se integra ao tempo que é unicamente o tempo de Ser. O tempo como o “nome da cadência ou do ritmo do movimento da ação de poder-ser” (1996, p. 46) provém do instante imediato que, sendo instante dado, desde então, já não é o mesmo, e assim sucessivamente. No coração do mundo, o movimento silencioso do tempo se faz ritmo na pulsação dos viventes. Nas palavras de Fogel, “o tempo é a tessitura da repetição alterante, diversificante, de instante sobre instante” (1996, p. 46). Assim, a vida, em seu irradiar de instantes que se sucedem, toma para si o seu próprio pulso rítmico. No acordo desse silêncio do tempo e o seu destino, ao se libertar em sua tarefa radical, o homem se faz e se refaz no tempo de um agora vital. Assim, o tempo do homem é levado pelo instante por se encarregar dele. Fogel considera sem utilidade pragmática essa atitude indispensável de se ocupar do que é mais próprio, “uma vez que ela não tem a sua força geratriz ou o seu sentido fora do próprio movimento, fora da própria ação” (1996, p. 47). A ação é, portanto, em si e por si mesma. Não adia nem almeja retorno ou recompensa futura por já conter no âmago de sua manifestação o início, o meio e o fim. “Da alegria do seu fazer nasce e renasce a disposição e o apetite de fazer” (1996, p. 47), afirma Fogel. O homem, ao decidir e optar por esse desempenhar-se criativo, estará disposto ao encontro do seu próprio ser no tempo, isto é, do seu próprio destino. Em outras palavras, estará fazendo e perfazendo a sua própria história, moldando-a com a disposição de se suceder livremente, de acordo com as suas escolhas. Para Fogel, o homem que não opera suas realizações na conciliação de uma ação necessária não terá começo e nem tampouco fundação ou fincamento vital. Por isto mesmo, também não terá fim – “fim como meta e desfecho, como balanço na linha do abismo, que é o limiar do possível deixar de ser. Tal homem, na verdade, nem vive nem morre (1996, p. 48).

Para Fogel, a vigência do silêncio se confunde com esse modo de ser atravessado pela ação absolutamente indispensável. Nesse sentido, o silêncio no homem “se faz como escuta, quer dizer, como abandono atento, como entrega cuidadosa” (1996, p. 51) a tudo que envolve e orienta o seu agir criativo.

Os rumores externos, mesmo que ensurdecedores, não constituem obstáculo para esse homem de silêncio, que, através de sua tarefa, constrói o seu destino. O que pode desorientá-lo é a disritmia de sua própria revolta ou o seu aborrecimento em não acatar os seus próprios limites. A sanha, ao obstruir o silêncio recôndito e a possibilidade do homem poder realizar-se, a partir daí, poderá se converter em uma ira desmesurada ou num tédio revestido de melancolia. Tais estados de espírito são capazes de apagar definitivamente sua serenidade acolhedora e lançá-lo no “alheamento infernal da inexistência da ação própria e necessária” (1996, p. 54).

O homem de silêncio, pleno em sua ocupação, vem a ser desse modo, como o alquimista que Alberto, o Grande, sugeriu: “paciente, perseverante e assíduo até o fim” (apud FLAMEL, 1973, p. 17). Precisa "curar-se", isto é, estar com o seu coração limpo, leve, para que nele possa pulsar a força sutil de sua vitalidade criadora. Só assim o ritmo de suas realizações se converterá no sentido rosiano de uma Travessia e o tempo de sua vida se tornará um aliado de seu imprescindível e inadiável operar, mesmo que essencialmente inútil e desinteressado.


Referências bibliográficas:

CARNEIRO LEÃO, Emmanuel. Aprendendo a pensar II. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 1992.
FLAMEL, Nicolas. O livro das figuras hieroglíficas. Rio de Janeiro: Editora Três, 1973.
LORENZ, Gunter. “Diálogo com Guimarães Rosa”. In: COUTINHO, Afrânio. Coleção Fortuna Crítica. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira/Instituto Nacional do Livro, 1983.
ROSA, João Guimarães. Noites do Sertão. Rio de Janeiro: José Olympio, 1969.
RUIN, Hans; FOGEL, Gilvan; SCHUBACK, Márcia Sá Cavalcante: Por uma fenomenologia do silêncio. Rio de Janeiro: IFCS-UFRJ/ Sette Letras, 1996.
WISNIK, J. M. O Som e o Sentido: uma outra história das músicas. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

Publicado na Revista Olho d'água, UNESP. São José do Rio Preto, v.1, pp. 39 - 43, 2009.

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