quinta-feira, 2 de maio de 2013

OS ELEMENTOS MUSICAIS E A ESCRITA


Atendo-nos às definições correntes dos principais elementos que constituem a música – a melodia, a harmonia e o ritmo – , nos vem a pergunta sobre as suas origens e o seu desenvolvimento. O que é o ritmo? O que é a harmonia? O que é a melodia? Como estas palavras se transformaram em conceitos regentes do que vem a se chamar de arte musical?

Com o estudo da origem do termo "ritmo" no Ocidente, Émile Benveniste o localiza entre os antigos gregos, fundamentando sua pesquisa na história do desenvolvimento da palavra rytmós. O linguista investiga a ligação existente entre as palavras rytmós e rein, isto é, entre ritmo e fluir. Com isso, desmistifica a noção ingênua de que o ritmo, como é hoje designado, foi entendido quando o homem, ao observar o mar, notou no movimento de fluxo e refluxo de suas ondas uma constante regularidade. Benveniste explica que a noção de ritmo enquanto o vai-e-vem das ondas não se compreende na palavra rein, que por sua vez sugere a imagem de um contínuo fluir dos rios, em sua permanente correnteza.

Segundo Benveniste, antes de ser o que hoje é entendido como ritmo, rytmós tinha um outro sentido, que era o de ser uma “forma distintiva, figura proporcionada, disposição” (1991, p. 366). Demócrito, filósofo da escola jônica, empregava rytmós como “forma”, ou seja, “o arranjo característico das partes num todo” (1991, p. 364). Esta definição também é encontrada em textos de Heródoto, Leucito, Anacreonte, Teócrito e Xenofonte, na lírica de Arquíloco, na poesia trágica de Ésquilo, Eurípedes e Sófocles, e na filosofia de Platão e Aristóteles.

Como existem outras palavras em grego para designar “forma”, Benveniste explica que rytmós, especificamente nos contextos em que aparece, designa a forma no instante em que é assumida por aquilo que é movediço, móvel, fluido, a forma daquilo que não tem consistência orgânica: convém ao pattern de um elemento fluido, a uma letra arbitrariamente modelada, a um peplo que se arruma como se quer, à disposição particular do caráter ou do humor. É a forma improvisada, momentânea, modificável (1991, p. 368).

Foi a partir de Platão que rytmós passou a delimitar o que hoje é entendido como ritmo. Platão partiu da definição largamente usada e a trouxe para exemplificar uma “forma do movimento que o corpo humano executa na dança, e à disposição das figuras nas quais se resolve esse movimento” (1991, p. 368). Benveniste atribui ao pensador o que ele chama de uma circunstância decisiva: “a noção de um rytmós corporal associado ao metron e submetido à lei dos números; essa ‘forma' é, a partir de então, determinada por uma ‘medida' e sujeita a uma ordem” (1991, p. 369).

O escritor e musicólogo Mário de Andrade, em Pequena História da Música, ao falar do ritmo em suas manifestações primigênias, usa a sua significação tal como ela foi entendida a partir de Platão e como ela é até hoje, associada a um intervalo de tempo regular no ataque do som. Mário de Andrade afirma que

"os elementos formais da música, o som e o ritmo, são tão velhos quanto o homem. Esse os possui em si mesmo, porque os movimentos do coração, o ato de respirar já são elementos rítmicos, o passo já organiza um ritmo, as mãos percutindo já podem determinar todos os elementos do ritmo. E a voz produz o som" (1987, p. 12).

O escritor atribui ao ritmo uma qualidade dinamogênica que age diretamente no homem sem que haja qualquer filtro da consciência. O ritmo no homem é o próprio pulsar vital de seu corpo. Para Mário de Andrade, essa noção é muito clara nos povos considerados primitivos. “O corpo é, para os primitivos, uma espécie de primeira consciência, uma inteligência física de maravilhosa acuidade” (1987, p. 16), diz o escritor. A manifestação do ritmo nos corpos, neste caso, reverbera coletivamente, promovendo socializações em torno da música. Mário de Andrade, descrevendo a musicalidade desses povos, diz que seus instrumentos são ruidosos, pouco melódicos, ao promoverem suas vibrações na medida em que são golpeados. Os sons emitidos dessa forma não têm altura fixa, não se sustentam, não se prolongam e tampouco se ligam a outros subseqüentes. Para o escritor, música assim, “predominantemente rítmica, muito pouco melodiosa, socialística e estreitamente interessada, no geral monótona”, por ser refratária à cadência abstrata da reflexão, propicia “os efeitos mágicos da encantação” (1987, p. 17).

Mário de Andrade, ao discorrer sobre a música da Antigüidade, aponta que nessa fase da história do Ocidente já existe o que pode ser chamado de uma arte musical. Nesse contexto é que se insere a Grécia dos aedos, cantores que se acompanhavam com a lira de quatro cordas, dos nomoi, cantados com acompanhamento das apolíneas cítaras (instrumentos de cordas), e dos ditirambos, entoados com o auxílio dos aulos (instrumentos de sopros). O helenista Carl Kerényi, ao falar dos ditirambos, cânticos em homenagem ao surgimento do deus Dioniso, como a música dos festivais atenienses, relata: “No ditirambo, canta-se o deus recém-nascido após um parto demorado. ‘Ditirambo' era um dos nomes do próprio Dioniso, nome que foi dado ao gênero de cântico coral” (2005, p. 262). “Arquíloco, o mais antigo compositor de ditirambos conhecido, confessou que sabia como cantar o ditirambo tão logo o vinho lhe abalava a mente com seu raio”, diz Kerényi. Capaz de proporcionar efeitos de transe, a música cultuada pelos gregos, tida como “um donativo especial das divindades” (1987, p. 24), era intimamente ligada à poesia e à dança. Diz Mário de Andrade que “o compositor grego era ao mesmo tempo cantor, poeta e dançarino. As músicas continham texto e expressão coreográfica” (1987, p. 28).

A palavra grega harmonía “significa precisamente 'junção das partes'” (BRANDÃO, 1988, p. 147). Platão, no diálogo Leis, já se referia à harmonia no contexto da música como a “ordem da voz na qual o agudo e o grave se fundem, e à união dos dois se chama arte vocal” (apud BENVENISTE, 1991, p. 369). Em A República, a harmonia aparece como união dos sons no sentido de uma alternância, idêntica à noção atual de uma escala musical. No Livro III desse diálogo há uma passagem em que Sócrates e o músico Glauco avaliam a melhor harmonia para ser utilizada na educação musical dos cidadãos. Conclui-se que as harmonias plangentes, como a lídia mista e a aguda, deveriam ser suprimidas por  provocarem a embriaguez e a indolência. As lassas, a jônica e a lídia, também teriam que ser deixadas de lado, por serem efeminadas. Apenas duas deveriam permanecer: a que imita a entonação de um guerreiro em uma violenta batalha e a que clama no homem pelo voluntarismo e pela moderação. Dessa forma ideal, só seria possível a propagação de músicas que inspirassem valentia ou temperança. Os instrumentos usados seriam apenas a cítara e a lira, sendo que nos campos ainda admitir-se-ia o pífaro. Censuradas estariam as flautas, por serem capazes de reproduzir todos os tipos de harmonias. O ritmo, por sua vez, não deveria variar muito, pois o movimento de sua cadência teria que exprimir para o cidadão “uma vida regulada e corajosa” (2000, p. 93). Ritmos que supostamente “convêm à baixeza, à insolência, à loucura e aos outros vícios” (2000, p. 93) deveriam ser imediatamente esquecidos.

Sócrates assim estabelece uma distinção fundamental entre dois tipos de música: a que deve ser proibida por estar ligada a um comportamento desajuizado e a que é permitida por ser considerada de utilidade pública para os cidadãos. A boa música, para o pensador, deve estar sempre ligada às idéias do bem e do belo. Nessa cisão, se evidencia a opção pela permanência do equilíbrio formal da música apolínea, representada pelas cítaras e liras, e a exclusão da expansiva música dionisíaca, das sonoras flautas ou dos aulos. Sócrates acredita, com suas idéias, purificar a pólis e retirá-la da languidez provocada pelas cerimônias extáticas e altissonantes que homenageiam o deus Dioniso. No seu projeto de sua cidade ideal, assistida e governada pelos filósofos, o pensador afirma que “a educação musical é a parte principal da educação, porque o ritmo e a harmonia têm o grande poder de penetrar na alma e tocá-la fortemente, levando com eles a graça e cortejando-a, quando se foi bem educado” (2000, p. 95). Nesse modelo idealizado, os músicos são vistos como guardiãs morais e a eles cabe “reconhecer as formas de moderação, da coragem, da generosidade, da grandeza de alma, das virtudes suas irmãs e dos vícios contrários” (2000, p. 96). Para Sócrates, a música unida à poesia tem sempre que se submeter ao dizeres do texto. Os elementos musicais, o ritmo, a harmonia e a melodia, têm que se adequar às palavras e nunca o contrário. José Miguel Wisnik, no seu livro “O Som e o Sentido”, comenta:

"Concebida como o próprio elemento regulador do equilíbrio cósmico que se realiza no equilíbrio social, a música é ambivalentemente um poder agregador, centrípeto, de grande utilidade pedagógica na formação do cidadão adequado à harmonia da pólis e, ao mesmo tempo um poder dissolvente, desagregador, centrífugo, capaz de pôr a perder a ordem social" (2000, p. 93).

No final do diálogo A República, no Livro X, Sócrates, ao mencionar as recompensas dadas aos homens bons pela justiça divina após a morte, relata a Glauco a estória de Er, o guerreiro que faleceu em uma batalha e milagrosamente ressuscitou dez dias depois. Sendo autorizado por imortais juízes, Er percorreu os confins do além para que pudesse voltar e contar onde esteve e o que viu. Entre tantas imagens extraordinárias das almas de homens terríveis pagando pelas suas iniquidades e de outras, daqueles que foram virtuosos em vida, celebrando as belas visões celestes, Er diz ter observado nas extremidades do céu uma configuração espacial em que oito esferas se equilibravam, girando com o auxílio da Necessidade. As esferas formavam oito círculos luminosos e moventes. No alto de cada um se encontrava uma Sereia, emitindo uma única nota. Uma harmonia celeste se ajustava nesse arranjo, onde ainda três outras mulheres, sentadas em seus respectivos tronos, “acompanhando a Harmonia das Sereias” (2000, p. 349), também cantavam. Eram as Moiras, as três filhas da Necessidade: Láquesis, a que canta o passado; Cloto, o presente; e Átropo, o futuro. Contou Er que, ao lado das três mulheres, um hierofante se fazia responsável por conduzir as almas dos mortos para a sufocante Planície de Lete, onde as almas bebiam a água do rio Ameles para que pudessem se esquecer de quase tudo que haviam presenciado, tanto na vida quanto na morte. As almas errantes, que ali bebessem mais do que lhes cabia, se destinariam a cair na ignorância de um total esquecimento. Porém, a Er, que acompanhara todos movimentos do cortejo das almas, não fora permitido beber a água. Para a sua surpresa, um trovão ruidoso, seguido de um intenso tremor, subitamente lançou as almas em uma nova vida terrestre, totalmente distinta da que porventura haviam perdido. Imediatamente após o momento da sua reencarnação, o guerreiro acordou em seu próprio corpo.

Platão, a partir do relato extraordinário das imagens presenciadas por Er, une seu pensamento a uma alegoria mítica numa armação em que o giro das esferas e o canto das sereias simbolizam conjuntamente os planetas e as notas da escala musical. Um cenário onde se conjugam as forças temporais das Moiras, que governam os destinos das almas, e os poderes de iniciação e de adivinhação de um hierofante. A imagem platônica da perfeição celestial a partir do arranjo sonoro das esferas é a metáfora ideal para a música. Corresponde ao tempo circular e irrevogável de uma harmonia infinita, cuja influência na constituição da pólis é demarcada pela beleza das reminiscências eternas. Música das alturas que se identifica com as vibrações de uma plenitude que é somente encontrada nas regiões supracelestes.

O mito de Er diz que as almas, antes de retornarem à vida, presenciam um grandioso espetáculo visual e sonoro e que, ao beberem a água do esquecimento, apagam de sua a memória quase tudo o que foi visto. Esse esquecer-se de quase tudo, necessário para a reencarnação das almas na Terra, deixa em uma nova vida a vaga possibilidade da lembrança dessas visões e das audições celestiais. Fonte de analogias, o mito de Er, relatado por Sócrates, é modelar. Um princípio universal que, associado à ordem numérica da Escola Pitagórica, alicerçou com firmeza as associações aritméticas, geométricas e até astronômicas, bastante sistemáticas para o pensamento e a prática musical posterior. Wisnik afirma que, nesse sentido, “o modelo da harmonia das esferas aspira para a música uma permanência sem acidentes nem desvios (ou transformações), e supõe que a escala (ideal) seja praticada sob estrita observância, sem deslizamento da norma” (2000, p. 93).

Na Europa medieval, sob o domínio musical da Igreja Católica, cujos dogmas foram bastante influenciados pelas doutrinas neoplatônicas, o culto ao ritmo, que nutria culturas dançarinas como a grega, deu lugar a uma música essencialmente melódica. Mário de Andrade afirma que houve uma “preponderância sutil e condescendente da melodia” (1987, p. 34) que embalou a cristandade durante muitos séculos. O escritor relaciona as vibrações da música vocalizada do canto gregoriano com os ideais de purificação e elevação da alma derivados do platonismo e buscados pela Igreja. Para Wisnik “o canto gregoriano é um herdeiro, neoplatônico, da harmonia das esferas” (2000, p. 96). Nele, com a conseqüente supremacia melódica, privilegia-se uma “música que se desenvolve no plano das alturas, negando o ritmo recorrente e as estruturas simétricas da canção popular para fluir estaticamente sobre o seu leito de sílabas sonoras, evoluindo sob o arco dos seus desenhos melódicos” (2000, p. 97).

Ambulantes, os bardos medievais, às margens do sistema clerical,  por volta do século XI, eram os legítimos portadores da tradição grega dos aedos Tempos depois, com o surgimento do Humanismo e o conseqüente mergulho do homem no estudo das artes do período da Antiguidade Clássica, houve uma crescente busca de diversos valores esquecidos pela civilização cristã. A antiga Grécia, pré-filosófica, dos mitos e de suas múltiplas divindades, voltou a inspirar os caminhos da arte e do pensamento. Músicos, acompanhados de alaúdes, címbalos e harpas, retomaram com força a figura dos cantores poetas. No século XVI, ocorreu um intenso movimento da canção popular, possibilitando um significativo retorno da importância social do ritmo e o florescimento de novas concepções sonoras, como a aceitação e a utilização da dissonância e do trítono. Foi no período denominado de Renascença, com a consolidação da polifonia, recurso estilístico há séculos já sendo utilizado, que pela primeira vez aparece o uso cadenciado de acordes, semelhante ao que hoje é chamado conceitualmente de uma estrutura harmônica. Na Itália, mais precisamente nos madrigais renascentistas de Veneza, passa-se a formar linhas de acordes com três notas nos alaúdes para o acompanhamento dos cantores. O alaúde, instrumento polifônico similar ao violão, bastante familiar nos séculos XV e XVI, segundo Mário de Andrade, se converte em um “convite constante à harmonia” (1987, p. 70). Com os encadeamentos dissonantes e consonantes de tensão e repouso, a prática musical ganha novos horizontes por meio de uma “dialética permanente da instabilidade e estabilidade” (2000, p. 101). A fixidez tonal da harmonia das esferas, característica marcante do cantochão, é substituída pelas relações móveis de tonalidade. No século XVII, finalmente, a harmonia se estabelece como uma técnica laica de amplas possibilidades, inaugurando uma nova e duradoura fase na história da música ocidental. Durante séculos de grandes compositores, com suas magníficas obras-primas, entre crises e revoluções sociais e políticas, em meio a mutações e sofisticações das formas musicais e dos ideais artísticos, o mundo ocidental se valeu e ainda se vale desse momento histórico da música. No século XX, porém, com a rebeldia venturosa de diversos compositores, foram postas em cheque muitas crenças em torno dessa estruturação harmônica. Acontece que quase todas as mudanças e experimentações se deram a partir da sua própria concepção.

Se na história da música ocidental, em sua determinação cronológica, o ritmo é considerado o mais antigo elemento e a harmonia o mais recente, a melodia, talvez por ser o mais próximo das implicações emotivas da fala humana, é que geralmente assume o maior destaque. Melodia, que provém do grego mélos, que significa “membro, articulação” (HOUAISS, 2001), assim se define, segundo as palavras do Dicionário Grove de Música: “Uma série de notas musicais dispostas em sucessão, num determinado padrão rítmico, para formar uma unidade identificável” (SADIE, 1994, p. 592). O dicionário assim descreve a dependência mútua dos elementos musicais:

Melodia, ritmo e harmonia são considerados os três elementos fundamentais da música; encará-los como independentes, porém, seria uma simplificação excessiva. O ritmo é componente importante da própria melodia não apenas porque cada nota tem uma duração, mas também porque a articulação rítmica numa escala mais ampla lhe dá forma e vitalidade; por outro lado, a harmonia geralmente desempenha papel essencial, ao menos na música ocidental, na determinação do contorno e na direção de uma linha melódica, cujas implicações harmônicas podem, por sua vez, dar vida à melodia (1994, p. 592).

Nota-se no texto transcrito do dicionário que, conceitualmente, a melodia assume mais importância do que os outros elementos musicais. Ao tratá-los em uma correlação de forças, Sadie demonstra claramente uma subordinação da harmonia e do ritmo aos caprichos dos contornos melódicos. Para o senso comum ocorre o mesmo. O interesse do ouvinte, na maioria dos casos, primeiro atende aos seus apelos. A atitude de ouvir música é, em geral, entendida como o sinônimo de seguir uma melodia. Embora existam exceções consideráveis, ocorridas em muitas obras, e até movimentos contrários à sua preponderância psicológica, a melodia quase sempre é o elemento mais característico para o reconhecimento e a memorização de uma determinada música.

O trompista da Orquestra do Teatro Nacional de Brasília e professor de Teoria Musical da UNB, Bohumil Med, apresentou em seu livro Teoria da Música uma definição didaticamente resumida sobre a arte musical, compreendida apenas em sua dimensão técnica: “Música é a arte de combinar os sons simultânea e sucessivamente, com ordem, equilíbrio e proporção dentro do tempo” (1996, p. 97). Nesse livro, destinado à iniciação musical, lê-se que a harmonia para os músicos está ligada a uma concepção vertical, isto é, os sons são “dispostos em uma ordem simultânea” (1996, p. 11), desse modo, produzindo efeitos diversos, ora consonantes ora dissonantes. Às sensações imediatas desses efeitos são atribuídas metáforas. Diz Med: “A consonância proporciona uma sensação de repouso e estabilidade” (1996, p. 97), enquanto que a dissonância sugere “movimento e tensão” (1996, p. 97). A melodia, por sua vez, sendo ocorrência sucessiva dos sons, é ligada a uma concepção horizontal. Comumente a ela se atribui ser o discurso da música. Quando esse discurso é feito por mais de uma voz, há que se considerar também o contraponto, que é o nome dado ao efeito produzido por melodias diferentes, quando tocadas ou ouvidas ao mesmo tempo. Para Med, o contraponto abrange a verticalidade e a horizontalidade na música. E o ritmo? Pertencem à instância convencionada do ritmo as idéias de ordem, equilíbrio e proporção em que sons harmônicos e melódicos se dispõem. O ritmo, considerado a parte mais elementar da música, é ligado a uma concepção matemática do tempo. Esses conceitos, há muito tempo aceitos e difundidos pelos que estudam música através de sua escrita, permanecem como tais em seu acabamento exemplar. Os músicos aprendem e os apreendem enquanto recursos técnicos. No entanto, é comum ouvir dos mesmos que a verdade de fazer música independe deles.

Mário de Andrade observou que, ao longo do desenvolvimento da música ocidental, sua apreensão se tornou muito mais espacial e muito menos temporal. O escritor, ao falar sobre as tendências artísticas do início do século XX, enunciou que seria preciso retomar na música sua temporalidade, ou seja, ela deveria ser produzida de maneira muito mais ativa, sendo basicamente rítmica, e não apenas reunida em abstrações representacionais que a preparam para ser decifrada posteriormente.

Ao acenar para uma perspectiva que libertasse a secular arte musical das convenções estabelecidas, Mário de Andrade afirmou que só assim “a compreensão da obra resultará mais duma saudade, dum desejo de tornar a escutá-la, que da relembrança contemplativa que fixa as partes, evoca, compara o que passou com o que está passando, reconstrói, fixa e julga. A relembrança pensa. A saudade sente” (1987, p. 200). O escritor defendeu a vigência de uma música que acontecesse concretamente e sensivelmente no tempo. A música do passado, para Andrade, se reduz a uma mera abstração, enquanto que a do presente, realizada na plenitude de um agora dinâmico, se faz palpável em sua espontânea vibração. A maior prova disso é a revalorização do timbre e da intensidade. Qualquer que seja sua intenção formuladora, a música se apresenta sempre concreta, por ser “puro movimento sonoro no tempo” (1987, p. 302). O escritor defendeu que a invenção deve sempre anteceder a concepção formal. A submissão aos modelos já estabelecidos, pertencentes aos consagrados cânones musicais, para o escritor, provoca um esgotamento das possibilidades inventivas. O uso corrente de formas pré-fixadas, na sua visão, facilita a criação musical na mesma medida em que a prende e a subjuga a padrões pré-concebidos.

Se por um lado soa pertinente para alguns estudiosos situar as teses de Mário de Andrade como resultantes de uma atmosfera específica de discussões apaixonadas em torno das diversas pretensões criadoras do Movimento Modernista, por outro é possível crer que o seu questionamento não se encerra nesse contexto. Andrade, ao relacionar o diálogo dos desdobramentos formativos e conceituais da literatura musical com o operar da música enquanto tensão entre realização e memória, toca nas questões que envolvem a escrita musical na medida em que, sob sua vigência técnica, se formaram os inúmeros conceitos que, durante muitos séculos, ordenaram o discurso musical do ocidente. Predominância histórica que foi bastante salutar para o entendimento comum da música e a preservação de suas manifestações mais significativas, situadas não só no contexto letrado das obras de arte como também no seio de uma tradição popular e oral. No Brasil, convém mencionar, perpetuada pela grafia do próprio escritor.

No Fedro, Platão coloca a questão fundamental da escrita. Sócrates, ao narrar a invenção do alfabeto, recorre a uma fábula acontecida no antigo Egito. Trata-se da estória do deus Thot, “o primeiro a descobrir os números e o cálculo, a geometria e a astronomia, o jogo de gamão e dos dados, e também os caracteres da escrita” (1975, p. 92). Thot apresentou todas essas artes a Tamuz, que reinava naquele país. Sobre a escrita, o deus contou ao Rei que seria “uma disciplina capaz de deixar os egípcios mais sábios e com melhor memória” (1975, p. 92). Thot lhe disse que trazia consigo “o remédio para o esquecimento e a ignorância” (1975, p. 92). No entanto, Tamuz, diante da engenhosidade do deus, argumentou que esta atribuição, dada pela divindade à escrita, seria oposta ao que realmente ela seria capaz de proporcionar. O Rei afirmou que a escrita é “bastante idônea para levar o esquecimento à alma de quem aprende pelo fato de não obrigá-lo ao exercício da memória” (1975, p. 92). Dirigindo suas palavras ao deus, sentenciou:

Confiante na escrita, será por meios externos, com a ajuda de caracteres estranhos, não no próprio íntimo e graças a eles mesmos, que passarão a despertar suas reminiscências. Não descobriste o remédio para a memória, mas apenas para a lembrança. O que ofereces aos que estudam é simples aparência do saber, não a própria realidade. Depois de ouvirem um mundo de coisas, sem nada terem aprendido, considerar-se-ão ultra-sábios, quando na grande maioria, não passam de ignorantões, pseudo-sábios, simplesmente não sábios de verdade (1975, ps. 92 e 93).

Se na fábula contada, com o diálogo de Thot e Tamuz, já estão postas em evidência as vantagens e desvantagens da escrita, Sócrates, conversando com Fedro, vai mais além. Ao advertir sobre as limitações dessa magna arte, diz que se perguntarmos algo às escrituras, elas só responderão “de um único modo e sempre a mesma coisa” (1975, p. 94). Como saída, porém, Sócrates relaciona a fábula referida com os fundamentos da doutrina platônica, ao recomendar que o uso da escrita seja somente destinado ao “homem que dispuser do conhecimento do justo, do belo e do bom” (1975, p. 94). Assim, para o pensador, apenas se autorizariam como legítimos os escritos que estivessem de acordo com um conhecimento nascido nas reminiscências da alma de quem os pronuncia.

Na fábula, o Rei questiona a escrita. Sócrates, por sua vez, reconhece como legítimo o seu discurso, ao concordar que realmente há nela algo perigoso. Se o perigo para o Rei seria a perda do exercício da memória, para Sócrates consistiria na possibilidade da legitimação de prováveis não-verdades. O comum para ambos é que não há como negar a importância dessa arte mágica, inventada por Thot, a divindade egípcia. O antídoto socrático (ou platônico) para o mal que possa ocorrer pela larga difusão de maus escritos é a recomendação de que a arte de escrever seja utilizada apenas por alguns privilegiados, ou seja, somente pelos que, segundo o pensamento platônico, ascenderam à possibilidade de uma contemplação metafísica de verdades imutáveis.

Quando o Rei, em seu discurso, se refere à memória, está de acordo com Sócrates, ao falar de uma memória de um além-mundo? Há nesta questão uma encruzilhada. A memória, tida como originária, que no mito é a deusa Mnemosyne, a mãe das musas, se atém num princípio gerador que se articula em um indeterminado porvir criativo. Para ser memória, ela tem que contar com o esquecimento de algo já encaminhado, de um modo que só é possível se lembrar do que se esquece. A memória platônica, ao sugerir as reminiscências de um saber determinado e determinante, conduz a uma reviravolta paradigmática. A verdade que dela advém deixa de ser uma revelação e passa a ser aferida pela correspondência a uma outra, encontrada alhures, num lugar onde as almas destituídas de seus corpos terrestres contemplam a perfeição de um conhecimento cristalizado. Nem seria preciso conhecer a história ulterior para entender que daí se está apenas um passo do conceito universal ou até mesmo do dogma.

E a escrita musical? Se a origem da música é indeterminada, a de sua escrita prescreve um início historiográfico. O Dicionário Grove de Música relata que, em 500 a.C., os gregos já possuíam um sistema de notação musical, ou seja, “um equivalente visual do som musical, que se pretende um registro do som ouvido ou imaginado, ou um conjunto de instruções visuais para intérpretes” (1994, p. 656). A escrita, ou a notação musical, como é hoje adotada universalmente, foi desenvolvida durante muitos séculos. “Até o século XI a altura era a única característica grafada. No século XII, inicia-se a definição da duração. O timbre começa a ser indicado a partir do século XVI e a intensidade, a partir do século XVII” (1996, p. 13), como informa Bohumil Med. A pauta, “conjunto de linhas em que, nos interstícios sobre, acima e abaixo delas, escrevem-se notas musicais” (SADIE, 1994, p. 707), originalmente utilizada no cantochão, existe desde o século IX. O pentagrama, ou a pauta de cinco linhas, sistema padrão para a notação musical no Ocidente, é usado desde o século XVIII.

Escrever e ler na pauta passou a ser a condição civilizadora de uma sólida educação musical. No entanto, sua preponderância não é unânime. O músico e compositor John Cage, em uma conferência realizada na Juilliard School of Music, quando discursou acompanhado pelo piano de David Tudor, sem que na hora sequer soubesse o que o pianista iria tocar, afirmou: “Enquanto se estuda música, as coisas ficam um pouco confusas. Sons já não são só sons, mas são símbolos” (1985, p. 96). A confusão que o músico se referiu consiste na constatação de que os sons estariam sendo produzidos mais para serem vistos e menos para serem ouvidos. “Se um som tiver a desgraça de não ter um símbolo ou se ele parecer complexo demais, é ejectado do sistema: é um ruído ou não-musical” (1985, p. 97), afirmou. Cage, ao reclamar um caminho diferente para o estudo e a produção musical, questionou a interposição mediadora que se dá na relação entre o músico e a notação musical. Na conferência, o músico criticou a tradição musical do Ocidente, excessivamente amparada pelo individualismo de seus compositores. Cage observou que o compositor, nesse contexto, aparece como uma figura autoritária, alguém que sempre diz o que se deve ou não se deve fazer. O músico pregava que a criação musical deveria definitivamente se voltar para as instâncias da indeterminação e do acaso. Inspirado pelo Zen-Budismo, pelo Livro das Mutações – I Ching – , e pelo pensamento místico de Mestre Eckhart, Cage sonhava “eliminar todos os pensamentos que separam a música da vida” (1985, p. 97). O músico advertiu para os estudantes de Juilliard que: “Há todo o tempo do mundo para estudar música, mas para viver não há quase tempo nenhum. Porque viver ocorre a cada instante e esse instante está sempre mudando” (1985, p. 98). “A coisa mais sensata a fazer é abrir os ouvidos imediatamente e ouvir um som de repente antes que o pensamento tenha a chance de transformá-lo em algo lógico, abstrato ou simbólico” (1985, p. 98), aconselhou.

BIBLIOGRAFIA

ANDRADE, Mário de. Pequena História da Música. Belo Horizonte: Itatiaia, 1987.
BENVENISTE, Émile. Problemas de Lingüística Geral I. Campinas: UNICAMP, 1991.
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KERÉNYI, Carl. Dioniso. Tradução de Ordep Serra. São Paulo: Odysseus, 2002.
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------------- Diálogos – Vol. V. Fedro – Cartas – O Primeiro Alcibíades. Tradução de Carlos Alberto Nunes. Belém: UFPA, 1975.
SADIE, Stanley. Dicionário Grove de Música (Edição Concisa). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1994.
WISNIK, José Miguel. O Som e o Sentido: Uma Outra História das Músicas. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

Publicado na Revista Garrafa (PPCL/UFRJ. Online), v.9, 2006

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