Atendo-nos às definições
correntes dos principais elementos que constituem a música – a
melodia, a harmonia e o ritmo – , nos vem a pergunta sobre as suas
origens e o seu desenvolvimento. O que é o ritmo? O que é a harmonia? O que é a melodia? Como estas palavras se transformaram em conceitos regentes do que vem
a se chamar de arte musical?
Com o estudo da origem do termo "ritmo" no Ocidente, Émile Benveniste o localiza entre os antigos gregos,
fundamentando sua pesquisa na história do desenvolvimento da palavra rytmós.
O linguista investiga a ligação existente entre as palavras rytmós e rein,
isto é, entre ritmo e fluir. Com isso, desmistifica a noção ingênua de que o
ritmo, como é hoje designado, foi entendido quando o homem, ao observar o mar,
notou no movimento de fluxo e refluxo de suas ondas uma constante regularidade.
Benveniste explica que a noção de ritmo enquanto o vai-e-vem das ondas não se
compreende na palavra rein, que por sua vez sugere a imagem de um
contínuo fluir dos rios, em sua permanente correnteza.
Segundo Benveniste, antes de ser
o que hoje é entendido como ritmo, rytmós tinha um outro sentido, que
era o de ser uma “forma distintiva, figura proporcionada, disposição”
(1991, p. 366). Demócrito, filósofo da escola jônica, empregava rytmós como
“forma”, ou seja, “o arranjo característico das partes num todo” (1991,
p. 364). Esta definição também é encontrada em textos de Heródoto, Leucito,
Anacreonte, Teócrito e Xenofonte, na lírica de Arquíloco, na poesia trágica de
Ésquilo, Eurípedes e Sófocles, e na filosofia de Platão e Aristóteles.
Como existem outras palavras em
grego para designar “forma”, Benveniste explica que rytmós,
especificamente nos contextos em que aparece, designa a forma no instante em que
é assumida por aquilo que é movediço, móvel, fluido, a forma daquilo que não
tem consistência orgânica: convém ao pattern de um elemento fluido, a
uma letra arbitrariamente modelada, a um peplo que se arruma como se quer, à
disposição particular do caráter ou do humor. É a forma improvisada,
momentânea, modificável (1991, p. 368).
Foi a partir de Platão que rytmós passou
a delimitar o que hoje é entendido como ritmo. Platão partiu da definição
largamente usada e a trouxe para exemplificar uma “forma do movimento que o
corpo humano executa na dança, e à disposição das figuras nas quais se resolve
esse movimento” (1991, p. 368). Benveniste atribui ao pensador o
que ele chama de uma circunstância decisiva: “a noção de um rytmós corporal
associado ao metron e submetido à lei dos números; essa ‘forma' é, a partir
de então, determinada por uma ‘medida' e sujeita a uma ordem” (1991, p. 369).
O escritor e musicólogo Mário de
Andrade, em Pequena História da Música, ao falar do ritmo em suas
manifestações primigênias, usa a sua significação tal como ela foi entendida a
partir de Platão e como ela é até hoje, associada a um intervalo de tempo
regular no ataque do som. Mário de Andrade afirma que
"os elementos formais da música, o
som e o ritmo, são tão velhos quanto o homem. Esse os possui em si mesmo, porque
os movimentos do coração, o ato de respirar já são elementos rítmicos, o passo
já organiza um ritmo, as mãos percutindo já podem determinar todos os elementos
do ritmo. E a voz produz o som" (1987, p. 12).
O escritor atribui ao ritmo uma
qualidade dinamogênica que age diretamente no homem sem que haja qualquer
filtro da consciência. O ritmo no homem é o próprio pulsar vital de seu corpo. Para
Mário de Andrade, essa noção é muito clara nos povos considerados primitivos.
“O corpo é, para os primitivos, uma espécie de primeira consciência, uma
inteligência física de maravilhosa acuidade” (1987, p. 16), diz o
escritor. A manifestação do ritmo nos corpos, neste caso, reverbera
coletivamente, promovendo socializações em torno da música. Mário de Andrade,
descrevendo a musicalidade desses povos, diz que seus instrumentos são
ruidosos, pouco melódicos, ao promoverem suas vibrações na medida em que são
golpeados. Os sons emitidos dessa forma não têm altura fixa, não se sustentam,
não se prolongam e tampouco se ligam a outros subseqüentes. Para o escritor,
música assim, “predominantemente rítmica, muito pouco melodiosa, socialística e
estreitamente interessada, no geral monótona”, por ser refratária à cadência
abstrata da reflexão, propicia “os efeitos mágicos da encantação” (1987, p. 17).
Mário de Andrade, ao discorrer
sobre a música da Antigüidade, aponta que nessa fase da
história do Ocidente já existe o que pode ser chamado de uma arte musical.
Nesse contexto é que se insere a Grécia dos aedos, cantores que se acompanhavam
com a lira de quatro cordas, dos nomoi, cantados com acompanhamento
das apolíneas cítaras (instrumentos de cordas), e dos ditirambos, entoados com
o auxílio dos aulos (instrumentos de sopros). O helenista Carl Kerényi, ao
falar dos ditirambos, cânticos em homenagem ao surgimento do deus Dioniso, como
a música dos festivais atenienses, relata: “No ditirambo, canta-se o deus
recém-nascido após um parto demorado. ‘Ditirambo' era um dos nomes do próprio
Dioniso, nome que foi dado ao gênero de cântico coral” (2005, p. 262).
“Arquíloco, o mais antigo compositor de ditirambos conhecido, confessou que
sabia como cantar o ditirambo tão logo o vinho lhe abalava a mente com seu
raio”, diz Kerényi. Capaz de proporcionar efeitos de transe, a música cultuada
pelos gregos, tida como “um donativo especial das divindades” (1987,
p. 24), era intimamente ligada à poesia e à dança. Diz Mário de Andrade que “o
compositor grego era ao mesmo tempo cantor, poeta e dançarino. As músicas
continham texto e expressão coreográfica” (1987, p. 28).
A palavra grega harmonía “significa precisamente 'junção das partes'” (BRANDÃO, 1988, p. 147). Platão,
no diálogo Leis, já se referia à harmonia no contexto da música como a “ordem
da voz na qual o agudo e o grave se fundem, e à união dos dois se chama arte
vocal” (apud BENVENISTE, 1991, p. 369). Em A
República, a harmonia aparece como união dos sons no sentido de uma alternância,
idêntica à noção atual de uma escala musical. No Livro III desse diálogo há
uma passagem em que Sócrates e o músico Glauco avaliam a melhor harmonia para
ser utilizada na educação musical dos cidadãos. Conclui-se que as harmonias
plangentes, como a lídia mista e a aguda, deveriam ser suprimidas por provocarem a embriaguez e a indolência. As lassas, a jônica e a lídia, também
teriam que ser deixadas de lado, por serem efeminadas. Apenas duas deveriam
permanecer: a que imita a entonação de um guerreiro em uma violenta batalha e a
que clama no homem pelo voluntarismo e pela moderação. Dessa forma ideal, só
seria possível a propagação de músicas que inspirassem valentia ou temperança.
Os instrumentos usados seriam apenas a cítara e a lira, sendo que nos campos
ainda admitir-se-ia o pífaro. Censuradas estariam as flautas, por serem capazes
de reproduzir todos os tipos de harmonias. O ritmo, por sua vez, não deveria
variar muito, pois o movimento de sua cadência teria que exprimir para o
cidadão “uma vida regulada e corajosa” (2000, p. 93). Ritmos que
supostamente “convêm à baixeza, à insolência, à loucura e aos outros vícios”
(2000, p. 93) deveriam ser imediatamente esquecidos.
Sócrates assim estabelece uma
distinção fundamental entre dois tipos de música: a que deve ser proibida por
estar ligada a um comportamento desajuizado e a que é permitida por ser
considerada de utilidade pública para os cidadãos. A boa música, para o
pensador, deve estar sempre ligada às idéias do bem e do belo. Nessa cisão, se
evidencia a opção pela permanência do equilíbrio formal da música apolínea,
representada pelas cítaras e liras, e a exclusão da expansiva música
dionisíaca, das sonoras flautas ou dos aulos. Sócrates acredita, com suas
idéias, purificar a pólis e retirá-la da languidez provocada pelas
cerimônias extáticas e altissonantes que homenageiam o deus Dioniso. No seu
projeto de sua cidade ideal, assistida e governada pelos filósofos, o pensador
afirma que “a educação musical é a parte principal da educação, porque o ritmo
e a harmonia têm o grande poder de penetrar na alma e tocá-la fortemente,
levando com eles a graça e cortejando-a, quando se foi bem educado” (2000, p. 95). Nesse modelo idealizado, os músicos são vistos como guardiãs
morais e a eles cabe “reconhecer as formas de moderação, da coragem, da
generosidade, da grandeza de alma, das virtudes suas irmãs e dos vícios
contrários” (2000, p. 96). Para Sócrates, a música unida à poesia tem
sempre que se submeter ao dizeres do texto. Os elementos musicais, o ritmo, a
harmonia e a melodia, têm que se adequar às palavras e nunca o contrário. José
Miguel Wisnik, no seu livro “O Som e o Sentido”, comenta:
"Concebida como o próprio elemento
regulador do equilíbrio cósmico que se realiza no equilíbrio social, a música é
ambivalentemente um poder agregador, centrípeto, de grande utilidade pedagógica
na formação do cidadão adequado à harmonia da pólis e, ao mesmo tempo
um poder dissolvente, desagregador, centrífugo, capaz de pôr a perder a ordem
social" (2000, p. 93).
No final do diálogo A
República, no Livro X, Sócrates, ao mencionar as recompensas dadas aos homens
bons pela justiça divina após a morte, relata a Glauco a estória de Er, o
guerreiro que faleceu em uma batalha e milagrosamente ressuscitou dez dias depois.
Sendo autorizado por imortais juízes, Er percorreu os confins do além para que
pudesse voltar e contar onde esteve e o que viu. Entre tantas imagens
extraordinárias das almas de homens terríveis pagando pelas suas iniquidades e
de outras, daqueles que foram virtuosos em vida, celebrando as belas visões
celestes, Er diz ter observado nas extremidades do céu uma configuração
espacial em que oito esferas se equilibravam, girando com o auxílio da
Necessidade. As esferas formavam oito círculos luminosos e moventes. No alto de
cada um se encontrava uma Sereia, emitindo uma única nota. Uma harmonia celeste
se ajustava nesse arranjo, onde ainda três outras mulheres, sentadas em seus
respectivos tronos, “acompanhando a Harmonia das Sereias” (2000, p.
349), também cantavam. Eram as Moiras, as três filhas da Necessidade: Láquesis,
a que canta o passado; Cloto, o presente; e Átropo, o futuro. Contou Er que, ao
lado das três mulheres, um hierofante se fazia responsável por conduzir as
almas dos mortos para a sufocante Planície de Lete, onde as almas bebiam a água
do rio Ameles para que pudessem se esquecer de quase tudo que haviam
presenciado, tanto na vida quanto na morte. As almas errantes, que ali bebessem
mais do que lhes cabia, se destinariam a cair na ignorância de um total
esquecimento. Porém, a Er, que acompanhara todos movimentos do cortejo das
almas, não fora permitido beber a água. Para a sua surpresa, um trovão ruidoso,
seguido de um intenso tremor, subitamente lançou as almas em uma nova vida
terrestre, totalmente distinta da que porventura haviam perdido. Imediatamente
após o momento da sua reencarnação, o guerreiro acordou em seu próprio corpo.
Platão, a partir do relato
extraordinário das imagens presenciadas por Er, une seu pensamento a uma
alegoria mítica numa armação em que o giro das esferas e o canto das sereias
simbolizam conjuntamente os planetas e as notas da escala musical. Um cenário
onde se conjugam as forças temporais das Moiras, que governam os destinos das
almas, e os poderes de iniciação e de adivinhação de um hierofante. A imagem
platônica da perfeição celestial a partir do arranjo sonoro das esferas é a metáfora ideal para a música. Corresponde ao tempo circular e irrevogável de
uma harmonia infinita, cuja influência na constituição da pólis é
demarcada pela beleza das reminiscências eternas. Música das alturas que se
identifica com as vibrações de uma plenitude que é somente encontrada nas
regiões supracelestes.
O mito de Er diz que as almas,
antes de retornarem à vida, presenciam um grandioso espetáculo visual e sonoro
e que, ao beberem a água do esquecimento, apagam de sua a memória quase tudo o
que foi visto. Esse esquecer-se de quase tudo, necessário para a reencarnação
das almas na Terra, deixa em uma nova vida a vaga possibilidade da lembrança
dessas visões e das audições celestiais. Fonte de analogias, o mito de Er,
relatado por Sócrates, é modelar. Um princípio universal que, associado à ordem
numérica da Escola Pitagórica, alicerçou com firmeza as associações aritméticas,
geométricas e até astronômicas, bastante sistemáticas para o pensamento e a
prática musical posterior. Wisnik afirma que, nesse sentido, “o modelo da
harmonia das esferas aspira para a música uma permanência sem acidentes nem
desvios (ou transformações), e supõe que a escala (ideal) seja praticada sob
estrita observância, sem deslizamento da norma” (2000, p. 93).
Na Europa medieval, sob o domínio
musical da Igreja Católica, cujos dogmas foram bastante influenciados pelas
doutrinas neoplatônicas, o culto ao ritmo, que nutria culturas dançarinas como
a grega, deu lugar a uma música essencialmente melódica. Mário de Andrade afirma que houve uma “preponderância sutil e condescendente da melodia” (1987, p. 34) que embalou a cristandade durante muitos séculos. O escritor
relaciona as vibrações da música vocalizada do canto gregoriano com os ideais
de purificação e elevação da alma derivados do platonismo e buscados pela
Igreja. Para Wisnik “o canto gregoriano é um herdeiro, neoplatônico, da harmonia
das esferas” (2000, p. 96). Nele, com a conseqüente supremacia
melódica, privilegia-se uma “música que se desenvolve no plano das alturas,
negando o ritmo recorrente e as estruturas simétricas da canção popular para
fluir estaticamente sobre o seu leito de sílabas sonoras, evoluindo sob o arco
dos seus desenhos melódicos” (2000, p. 97).
Ambulantes, os bardos medievais, às margens do sistema clerical, por volta do século XI, eram os legítimos
portadores da tradição grega dos aedos Tempos depois, com o surgimento do
Humanismo e o conseqüente mergulho do homem no estudo das artes do período da Antiguidade Clássica, houve uma crescente busca de diversos valores esquecidos
pela civilização cristã. A antiga Grécia, pré-filosófica, dos mitos e de suas
múltiplas divindades, voltou a inspirar os caminhos da arte e do pensamento.
Músicos, acompanhados de alaúdes, címbalos e harpas, retomaram com força a
figura dos cantores poetas. No século XVI, ocorreu um intenso movimento da
canção popular, possibilitando um significativo retorno da importância social
do ritmo e o florescimento de novas concepções sonoras, como a aceitação e a utilização da dissonância e do trítono. Foi no período denominado de
Renascença, com a consolidação da polifonia, recurso estilístico há séculos já
sendo utilizado, que pela primeira vez aparece o uso cadenciado de acordes,
semelhante ao que hoje é chamado conceitualmente de uma estrutura harmônica. Na
Itália, mais precisamente nos madrigais renascentistas de Veneza, passa-se a formar
linhas de acordes com três notas nos alaúdes para o acompanhamento dos
cantores. O alaúde, instrumento polifônico similar ao violão, bastante familiar
nos séculos XV e XVI, segundo Mário de Andrade, se converte em um “convite
constante à harmonia” (1987, p. 70). Com os encadeamentos dissonantes
e consonantes de tensão e repouso, a prática musical ganha novos horizontes por
meio de uma “dialética permanente da instabilidade e estabilidade” (2000, p. 101). A fixidez tonal da harmonia das esferas, característica marcante
do cantochão, é substituída pelas relações móveis de tonalidade. No século
XVII, finalmente, a harmonia se estabelece como uma técnica laica de amplas
possibilidades, inaugurando uma nova e duradoura fase na história da música
ocidental. Durante séculos de grandes compositores, com suas magníficas
obras-primas, entre crises e revoluções sociais e políticas, em meio a mutações
e sofisticações das formas musicais e dos ideais artísticos, o mundo ocidental
se valeu e ainda se vale desse momento histórico da música. No século XX, porém, com a
rebeldia venturosa de diversos compositores, foram postas em cheque muitas
crenças em torno dessa estruturação harmônica. Acontece que quase todas as
mudanças e experimentações se deram a partir da sua própria concepção.
Se na história da música
ocidental, em sua determinação cronológica, o ritmo é considerado o mais antigo
elemento e a harmonia o mais recente, a melodia, talvez por ser o mais próximo
das implicações emotivas da fala humana, é que geralmente assume o maior
destaque. Melodia, que provém do grego mélos, que significa “membro,
articulação” (HOUAISS, 2001), assim se define, segundo as palavras do Dicionário Grove de Música: “Uma série de notas musicais dispostas em
sucessão, num determinado padrão rítmico, para formar uma unidade
identificável” (SADIE, 1994, p. 592). O dicionário assim descreve a dependência
mútua dos elementos musicais:
Melodia, ritmo e harmonia são
considerados os três elementos fundamentais da música; encará-los como
independentes, porém, seria uma simplificação excessiva. O ritmo é componente
importante da própria melodia não apenas porque cada nota tem uma duração, mas
também porque a articulação rítmica numa escala mais ampla lhe dá forma e
vitalidade; por outro lado, a harmonia geralmente desempenha papel essencial,
ao menos na música ocidental, na determinação do contorno e na direção de uma
linha melódica, cujas implicações harmônicas podem, por sua vez, dar vida à
melodia (1994, p. 592).
Nota-se no texto transcrito do
dicionário que, conceitualmente, a melodia assume mais importância do que os
outros elementos musicais. Ao tratá-los em uma correlação de forças, Sadie
demonstra claramente uma subordinação da harmonia e do ritmo aos caprichos dos
contornos melódicos. Para o senso comum ocorre o mesmo. O interesse do
ouvinte, na maioria dos casos, primeiro atende aos seus apelos. A atitude de
ouvir música é, em geral, entendida como o sinônimo de seguir uma melodia.
Embora existam exceções consideráveis, ocorridas em muitas obras, e até
movimentos contrários à sua preponderância psicológica, a melodia quase sempre
é o elemento mais característico para o reconhecimento e a memorização de uma
determinada música.
O trompista da Orquestra do
Teatro Nacional de Brasília e professor de Teoria Musical da UNB, Bohumil Med,
apresentou em seu livro Teoria da Música uma definição didaticamente resumida
sobre a arte musical, compreendida apenas em sua dimensão técnica: “Música é a
arte de combinar os sons simultânea e sucessivamente, com ordem, equilíbrio e
proporção dentro do tempo” (1996, p. 97). Nesse livro, destinado à
iniciação musical, lê-se que a harmonia para os músicos está ligada a uma
concepção vertical, isto é, os sons são “dispostos em uma ordem simultânea”
(1996, p. 11), desse modo, produzindo efeitos diversos, ora consonantes
ora dissonantes. Às sensações imediatas desses efeitos são atribuídas
metáforas. Diz Med: “A consonância proporciona uma sensação de repouso e
estabilidade” (1996, p. 97), enquanto que a dissonância sugere “movimento
e tensão” (1996, p. 97). A melodia, por sua vez, sendo ocorrência
sucessiva dos sons, é ligada a uma concepção horizontal. Comumente a ela se
atribui ser o discurso da música. Quando esse discurso é feito por mais de uma
voz, há que se considerar também o contraponto, que é o nome dado ao efeito
produzido por melodias diferentes, quando tocadas ou ouvidas ao mesmo tempo.
Para Med, o contraponto abrange a verticalidade e a horizontalidade na música.
E o ritmo? Pertencem à instância convencionada do ritmo as idéias de ordem,
equilíbrio e proporção em que sons harmônicos e melódicos se dispõem. O ritmo,
considerado a parte mais elementar da música, é ligado a uma concepção
matemática do tempo. Esses conceitos, há muito tempo aceitos e difundidos pelos
que estudam música através de sua escrita, permanecem como tais em seu
acabamento exemplar. Os músicos aprendem e os apreendem enquanto recursos
técnicos. No entanto, é comum ouvir dos mesmos que a verdade de fazer música
independe deles.
Mário de Andrade observou que, ao
longo do desenvolvimento da música ocidental, sua apreensão se tornou muito
mais espacial e muito menos temporal. O escritor, ao falar sobre as tendências
artísticas do início do século XX, enunciou que seria preciso retomar na música
sua temporalidade, ou seja, ela deveria ser produzida de maneira muito mais
ativa, sendo basicamente rítmica, e não apenas reunida em abstrações
representacionais que a preparam para ser decifrada posteriormente.
Ao acenar para uma perspectiva
que libertasse a secular arte musical das convenções estabelecidas, Mário de
Andrade afirmou que só assim “a compreensão da obra resultará mais duma
saudade, dum desejo de tornar a escutá-la, que da relembrança contemplativa que
fixa as partes, evoca, compara o que passou com o que está passando,
reconstrói, fixa e julga. A relembrança pensa. A saudade sente” (1987,
p. 200). O escritor defendeu a vigência de uma música que acontecesse
concretamente e sensivelmente no tempo. A música do passado, para Andrade, se
reduz a uma mera abstração, enquanto que a do presente, realizada na plenitude
de um agora dinâmico, se faz palpável em sua espontânea vibração. A maior prova
disso é a revalorização do timbre e da intensidade. Qualquer que seja sua
intenção formuladora, a música se apresenta sempre concreta, por ser “puro
movimento sonoro no tempo” (1987, p. 302). O escritor defendeu que a
invenção deve sempre anteceder a concepção formal. A submissão aos modelos já
estabelecidos, pertencentes aos consagrados cânones musicais, para o escritor,
provoca um esgotamento das possibilidades inventivas. O uso corrente de formas
pré-fixadas, na sua visão, facilita a criação musical na mesma medida em que a
prende e a subjuga a padrões pré-concebidos.
Se por um lado soa pertinente
para alguns estudiosos situar as teses de Mário de Andrade como resultantes de
uma atmosfera específica de discussões apaixonadas em torno das diversas
pretensões criadoras do Movimento Modernista, por outro é possível crer que o
seu questionamento não se encerra nesse contexto. Andrade, ao
relacionar o diálogo dos desdobramentos formativos e conceituais da literatura
musical com o operar da música enquanto tensão entre realização e memória, toca
nas questões que envolvem a escrita musical na medida em que, sob sua vigência
técnica, se formaram os inúmeros conceitos que, durante muitos séculos,
ordenaram o discurso musical do ocidente. Predominância histórica que foi
bastante salutar para o entendimento comum da música e a preservação de suas
manifestações mais significativas, situadas não só no contexto letrado das
obras de arte como também no seio de uma tradição popular e oral. No Brasil,
convém mencionar, perpetuada pela grafia do próprio escritor.
No Fedro, Platão coloca
a questão fundamental da escrita. Sócrates, ao narrar a invenção do alfabeto,
recorre a uma fábula acontecida no antigo Egito. Trata-se da estória do deus
Thot, “o primeiro a descobrir os números e o cálculo, a geometria e a
astronomia, o jogo de gamão e dos dados, e também os caracteres da escrita”
(1975, p. 92). Thot apresentou todas essas artes a Tamuz, que reinava
naquele país. Sobre a escrita, o deus contou ao Rei que seria “uma disciplina
capaz de deixar os egípcios mais sábios e com melhor memória” (1975, p.
92). Thot lhe disse que trazia consigo “o remédio para o esquecimento e a
ignorância” (1975, p. 92). No entanto, Tamuz, diante da engenhosidade
do deus, argumentou que esta atribuição, dada pela divindade à escrita, seria
oposta ao que realmente ela seria capaz de proporcionar. O Rei afirmou que a
escrita é “bastante idônea para levar o esquecimento à alma de quem aprende
pelo fato de não obrigá-lo ao exercício da memória” (1975, p. 92).
Dirigindo suas palavras ao deus, sentenciou:
Confiante na escrita, será por
meios externos, com a ajuda de caracteres estranhos, não no próprio íntimo e
graças a eles mesmos, que passarão a despertar suas reminiscências. Não
descobriste o remédio para a memória, mas apenas para a lembrança. O que
ofereces aos que estudam é simples aparência do saber, não a própria realidade.
Depois de ouvirem um mundo de coisas, sem nada terem aprendido,
considerar-se-ão ultra-sábios, quando na grande maioria, não passam de
ignorantões, pseudo-sábios, simplesmente não sábios de verdade (1975,
ps. 92 e 93).
Se na fábula contada, com o
diálogo de Thot e Tamuz, já estão postas em evidência as vantagens e
desvantagens da escrita, Sócrates, conversando com Fedro, vai mais além.
Ao advertir sobre as limitações dessa magna arte, diz que se perguntarmos algo
às escrituras, elas só responderão “de um único modo e sempre a mesma coisa”
(1975, p. 94). Como saída, porém, Sócrates relaciona a fábula referida
com os fundamentos da doutrina platônica, ao recomendar que o uso da escrita
seja somente destinado ao “homem que dispuser do conhecimento do justo, do belo
e do bom” (1975, p. 94). Assim, para o pensador, apenas se autorizariam
como legítimos os escritos que estivessem de acordo com um conhecimento nascido
nas reminiscências da alma de quem os pronuncia.
Na fábula, o Rei questiona a
escrita. Sócrates, por sua vez, reconhece como legítimo o seu discurso, ao
concordar que realmente há nela algo perigoso. Se o perigo para o Rei seria a
perda do exercício da memória, para Sócrates consistiria na possibilidade da
legitimação de prováveis não-verdades. O comum para ambos é que não há como
negar a importância dessa arte mágica, inventada por Thot, a divindade egípcia.
O antídoto socrático (ou platônico) para o mal que possa ocorrer pela larga
difusão de maus escritos é a recomendação de que a arte de escrever seja
utilizada apenas por alguns privilegiados, ou seja, somente pelos que, segundo
o pensamento platônico, ascenderam à possibilidade de uma contemplação
metafísica de verdades imutáveis.
Quando o Rei, em seu discurso, se
refere à memória, está de acordo com Sócrates, ao falar de uma memória de um
além-mundo? Há nesta questão uma encruzilhada. A memória, tida como originária,
que no mito é a deusa Mnemosyne, a mãe das musas, se atém num princípio gerador
que se articula em um indeterminado porvir criativo. Para ser memória, ela tem
que contar com o esquecimento de algo já encaminhado, de um modo que só é
possível se lembrar do que se esquece. A memória platônica, ao sugerir as
reminiscências de um saber determinado e determinante, conduz a uma reviravolta
paradigmática. A verdade que dela advém deixa de ser uma revelação e passa a
ser aferida pela correspondência a uma outra, encontrada alhures, num lugar
onde as almas destituídas de seus corpos terrestres contemplam a perfeição de
um conhecimento cristalizado. Nem seria preciso conhecer a história ulterior
para entender que daí se está apenas um passo do conceito universal ou até
mesmo do dogma.
E a escrita musical? Se a origem
da música é indeterminada, a de sua escrita prescreve um início
historiográfico. O Dicionário Grove de Música relata que, em 500 a.C., os
gregos já possuíam um sistema de notação musical, ou seja, “um equivalente
visual do som musical, que se pretende um registro do som ouvido ou imaginado,
ou um conjunto de instruções visuais para intérpretes” (1994, p. 656). A
escrita, ou a notação musical, como é hoje adotada universalmente, foi
desenvolvida durante muitos séculos. “Até o século XI a altura era a única
característica grafada. No século XII, inicia-se a definição da duração. O
timbre começa a ser indicado a partir do século XVI e a intensidade, a partir
do século XVII” (1996, p. 13), como informa Bohumil Med. A pauta, “conjunto de
linhas em que, nos interstícios sobre, acima e abaixo delas, escrevem-se notas
musicais” (SADIE, 1994, p. 707), originalmente utilizada no cantochão, existe
desde o século IX. O pentagrama, ou a pauta de cinco linhas, sistema padrão
para a notação musical no Ocidente, é usado desde o século XVIII.
Escrever e ler na pauta passou a
ser a condição civilizadora de uma sólida educação musical. No entanto, sua
preponderância não é unânime. O músico e compositor John Cage, em uma
conferência realizada na Juilliard School of Music, quando discursou
acompanhado pelo piano de David Tudor, sem que na hora sequer soubesse o que o
pianista iria tocar, afirmou: “Enquanto se estuda música, as coisas ficam um
pouco confusas. Sons já não são só sons, mas são símbolos” (1985, p. 96).
A confusão que o músico se referiu consiste na constatação de que os sons
estariam sendo produzidos mais para serem vistos e menos para serem ouvidos.
“Se um som tiver a desgraça de não ter um símbolo ou se ele parecer complexo
demais, é ejectado do sistema: é um ruído ou não-musical” (1985, p. 97),
afirmou. Cage, ao reclamar um caminho diferente para o estudo e a produção
musical, questionou a interposição mediadora que se dá na relação entre o
músico e a notação musical. Na conferência, o músico criticou a tradição
musical do Ocidente, excessivamente amparada pelo individualismo de seus
compositores. Cage observou que o compositor, nesse contexto, aparece como uma
figura autoritária, alguém que sempre diz o que se deve ou não se deve fazer. O
músico pregava que a criação musical deveria definitivamente se voltar para as
instâncias da indeterminação e do acaso. Inspirado pelo Zen-Budismo, pelo Livro
das Mutações – I Ching – , e pelo pensamento místico de Mestre Eckhart, Cage
sonhava “eliminar todos os pensamentos que separam a música da vida” (1985, p. 97). O músico advertiu para os estudantes de Juilliard que: “Há todo o
tempo do mundo para estudar música, mas para viver não há quase tempo nenhum.
Porque viver ocorre a cada instante e esse instante está sempre mudando” (1985, p. 98). “A coisa mais sensata a fazer é abrir os ouvidos imediatamente e
ouvir um som de repente antes que o pensamento tenha a chance de transformá-lo
em algo lógico, abstrato ou simbólico” (1985, p. 98), aconselhou.
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Publicado na Revista Garrafa (PPCL/UFRJ. Online), v.9, 2006
Publicado na Revista Garrafa (PPCL/UFRJ. Online), v.9, 2006
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