quarta-feira, 26 de dezembro de 2007

NOTAS SOBRE O ZARATUSTRA DE NIETZSCHE


Anotações feitas durante o mini-curso "As cosmovisões de Zaratustra: corpo, terra e mundo".


1. Assim Falou Zaratustra, obra poético-filosófica sem precedentes na história do pensamento, foi escrita por Friedrich Nietzsche entre 1883 e 1885. No livro auto-biográfico Ecce Homo, Nietzsche discorreu sobre o pathos trágico que envolveu a feitura da obra, as dificuldades com a saúde, a influência de Lou Salomé, uma jovem russa que Nietzsche amou sem ser correspondido, as mudanças de cidades, tudo isso acontecendo enquanto se punha a escrever a saga de Zaratustra. Uma inspiração mediúnica foi fundamental para a clarividência da obra. Assim descreve o pensador:

"Um êxtase cuja tremenda tensão desata-se por vezes em torrente de lágrimas, no qual o passo involuntariamente ora se precipita, ora se arrasta; um completo estar fora de si, com a claríssima consciência de um sem-número de delicados tremores e calafrios que chegam aos dedos dos pés; um abismo de felicidade, onde o que é mais doloroso e sombrio não atua como contrário, mas como algo condicionado, como uma cor necessária em meio a tal profusão de luz; um instinto para relações rítmicas que abarca imensos espaços de formas - a longitude, a necessidade de um ritmo amplo é quase a medida para a potência da inspiração, uma espécie de compensação para sua pressão e tensão..." (NIETZSCHE, 2004, p. 86).

2. Tudo o que antes Nietzsche escrevera sobre o dionisíaco no seu primeiro livro, O nascimento da Tragédia, em Assim Falou Zaratustra se consumou em sua plenitude e potência.

"Somem-se o espírito e a bondade de todas as grandes almas em uma: todas juntas não seriam capazes de produzir uma fala de Zaratustra. Tremenda é a escala em que ele se move; ele viu mais longe, quis mais longe e pôde mais longe que qualquer homem. Ele contradiz com cada palavra, esse mais afirmativo dos espíritos; nele todos os opostos se fundem numa nova unidade" (NIETZSCHE, 2004, p. 89).

3. Roberto Machado, em Zaratustra – tragédia nietzschiana, relaciona Assim Falou Zaratustra com O nascimento da tragédia a partir do espírito da música. Neste livro, o primeiro escrito por Nietzsche, em 1871, está em jogo a oposição dos conceitos filosóficos, a partir da influência decisiva de Sócrates e Platão, e o conhecimento trágico oriundo do mito e da música. Esse saber, que teve sua força máxima de expressão na tragédia grega e que fora deixado de lado pela tradição filosófica, aparece em Assim falou Zaratustra na medida em que o discurso é proferido num tom musical e não se submete a uma racionalidade causal nem tampouco dialética. A obra de Nietzsche trata das questões fundamentais do homem ao se libertar da "surdez" metafísica contida na retórica do pensamento ocidental. Assume sua musicalidade em consonância com o deus Dioniso, opondo-se ao jogo de conceitos lógico-racionais da chamada “civilização socrática”. Roberto Machado afirmou que em Assim Falou Zaratustra “o conceito é uma palavra enfraquecida pela distância em que se encontra da expressividade musical do trágico e o canto é o que eleva a palavra ao ápice de sua musicalidade, fazendo-a encontrar ou reencontrar a sua força originária” (MACHADO, 2001, ps. 12 e 13). Em carta enviada ao filólogo Erwin Rohde, no ano de 1884, o próprio Nietzsche afirmara: “Meu estilo é uma dança, um jogo de toda sorte de simetrias e um pular por cima e zombar dessas simetrias. Isso até na escolha das vogais” (NIETZSCHE, 2006, p. 29). No Ecce Homo, ao dedicar um capítulo a Assim Falou Zaratustra, Nietzsche relacionou sua escrita com a arte musical: “Talvez se possa ver o Zaratustra inteiro como música; – certamente um renascimento da arte de ouvir esta música era uma precondição para ele” (NIETZSCHE, 2004, p. 82). Roberto Machado escreveu que, “com sua força poético-dramática, Zaratustra é a realização do projeto wagneriano, tal como Nietzsche o havia interpretado” (MACHADO, 2001, p. 23). Nietzsche, antes de romper com o compositor, via na música de Wagner uma maneira de devolver à linguagem sua força mítica ao libertá-la das limitações dos conceitos. O mito, assim como a música, maleável em suas múltiplas possibilidades, tem o poder de se fundir e se confundir na sucessão dos fatos e eventos. A narrativa de Assim Falou Zaratustra, que se apresenta: mítica e musical, em sua dinâmica de sentido, ao ser cantada, é também encenada. O encadeamento de seus atos é bastante tributário da arte teatral. Seus tons, musicais e cênicos, são as sequências de uma ópera. Transitam na rica modulação expressiva das palavras. Zaratustra, o protagonista, é um anunciador e um poeta. Sua fala é cantada. Roberto Machado escreveu que “considerar o Zaratustra canto significa dizer que nele a palavra canta pela própria musicalidade da palavra” (MACHADO, 2001, p. 25). Nietzsche revelara no Ecce Homo que Assim falou Zaratustra possui a linguagem do ditirambo, hino consagrado ao deus Dioniso.

4. O privilégio dessas notas é tomar a obra de Nietzsche em uma perspectiva interdisciplinar, apresentando-a como ela mesma é: obra de arte e pensamento. Como obra de arte, em sua singularidade, Assim falou Zaratustra não se restringe às explicações causais relativas ao tempo e às circunstâncias que envolveram o seu acabamento. Sua permanência em deixar-se aberta a novas interpretações se deve também ao fato de que Nietzsche foi um grande pensador que ousou tocar nas questões essenciais do homem. Martin Heidegger, em A Origem da Obra de Arte, diz que para tornar a obra de arte acessível em si, é preciso “retirar a obra de todas as referências ao que ela própria não é, para a deixar repousar só para si, só e em si mesma” (HEIDEGGER, 2006, p. 26). A obra, através do artista, se liberta para sua própria deviniência. “Justamente, na grande arte, e aqui só se fala dela, o artista posta-se diante da obra como algo indiferente, quase como uma passagem que se auto-aniquila para o surgir da obra, no ato de criar” (HEIDEGGER, 2006, p. 26). Considerando as palavras de Heidegger, qual seria o espaço essencial de Assim falou Zaratustra? Qual o âmbito que ainda se abre depois de tudo o que se disse sobre a obra? Se, como profere Heidegger, na obra, a verdade da obra está em obra, que verdade ou mesmo que verdades a obra de Nietzsche pode revelar?

5. Em Assim Falou Zaratustra, no capítulo que abre o livro, "O prólogo de Zaratustra", Zaratustra, então com mais ou menos 30 anos de idade, isola-se do mundo e passa por um processo de autoconhecimento. Dez anos depois, por uma necessidade imperiosa de anunciar o que pensara nos dias de seu resguardo purificador, decide iniciar o seu ocaso. Ao descer de sua caverna na montanha para dirigir suas palavras aos citadinos, afirma-lhes em praça pública que o homem é algo que deve ser superado e promete-lhes em seguida ensinar a doutrina do super-homem. Assim proclama: “O super-homem é o sentido da terra. Fazei a vossa vontade dizer: ‘Que o super-homem seja o sentido da terra!’ ” (NIETZSCHE, 2006, p. 36). Zaratustra pede aos seus ouvintes que permaneçam fiéis à terra e não acreditem em nada que seja exterior a ela. Em seus discursos, investe contra os pregadores do cristianismo, os que prometem ganhos para além da terra, isto é, as bem-aventuranças no céu após a morte. Chama-os de envenenadores e desprezadores da vida, “dos quais a terra está cansada” (NIETZSCHE, 2006, p. 36). Um cansaço que, numa leitura atualizada, diz muito sobre o colapso que Gaia se vê em pleno século XXI. A terra está cansada das palavras vãs e enganadoras referidas na voz de Zaratustra e do modelo técnico-científico a que está imposta, adoecendo para corresponder aos padrões dominadores que têm no seu autoconsumo um fim em si mesmo. Essa é a delinqüência maior do homem, a de “atribuir mais valor às entranhas do imperscrutável do que ao sentido da terra” (NIETZSCHE, 2006, p. 36). Ir ao encontro do sentido da terra para Zaratustra significa caminhar na direção do super-homem, esse a princípio tão enigmático quanto a própria afirmação do que significa propriamente retomar o sentido da terra. Estaria além de sua destruição progressiva através de processos irreversíveis de relacionamento com o real? O respeito por sua própria dinâmica cósmica de se haver com forças que escapam ao homem? Na obra de Nietzsche, o super-homem surge como a esperança num mundo onde não mais importam valores humanitários como a felicidade, a razão, a virtude, a justiça e a compaixão.

6. Zaratustra conclama a seus ouvintes que “o que há de grande no homem é ser uma ponte, e não meta: o que pode amar-se no homem, é uma transição e um ocaso” (NIETZSCHE, 2006, p. 38). Diz ainda: “Amo aqueles que, para o seu ocaso e sacrifício, não procuram, primeiro, um motivo atrás das estrelas, mas se sacrificam à terra, para que a terra, algum dia, se torne do super-homem” (NIETZSCHE, 2006, p. 38). O motivo atrás das estrelas na fala de Nietzsche é a doutrina platônica das almas e seus desdobramentos neoplatônicos e cristãos. Fiel à terra, Zaratustra exalta aquele que a prepara para o super-homem e nela inventa o melhor modo de construir sua casa. Ama as almas transbordantes e os corações livres. O homem, mesmo se comparado a uma negra nuvem com suas pesadas gotas de chuva, é ainda quem pode liberar o raio iluminador. Zaratustra se diz o prenunciador desse raio que se chama super-homem: “Já é tempo de o homem estabelecer a sua meta. Já é tempo de o homem plantar a semente da sua mais alta esperança. Seu solo ainda é bastante rico para isso. Mas algum dia, esse solo estará pobre e esgotado, e nenhuma árvore poderá mais crescer nele” (NIETZSCHE, 2006, p. 40).

7. Plantar uma semente é metáfora que une terra e homem. Unidos serão férteis, separados permanecerão estéreis. Que é o homem sem o cultivar? Explorar a terra até o seu cansaço ou prepará-la para receber sua doação? O mundo caminha para a sua devastação. O homem se envergonha. Os avisos soam como um ultimato. Será esse o último homem a que Zaratustra se refere? Sem ser levado a sério pelos homens, Zaratustra se recolhe ante à multidão. O curso de seus pensamentos é interrompido por uma série de eventos. Um morto cai a seus pés. Zaratustra elogia sua coragem, pois morreu quem estava vivendo o perigo de seu ofício: o de andar equilibrado numa corda estendida num abismo. Zaratustra, ao ver-se diante do cadáver derrubado por um inimigo fantasiado de palhaço, pressente os limites de sua missão. Quer falar aos vivos e não aos mortos. Sente que suas anunciações devem ser dirigidas apenas àqueles poucos que lhe derem ouvidos e que queiram seguí-lo. Eis que aparecem uma águia com uma serpente enrolada no pescoço. São os animais de Zaratustra que, na sua simbologia, representam valores bastante preciosos para a sua jornada. A águia, sendo o animal mais altivo, e a serpente, o mais prudente. Zaratustra pede aos animais para ser guiado por eles. Quer o impossível: a união da altivez com a prudência. Se a prudência por ora lhe abandonar, roga que essa seja substituída pela loucura. Assim falou Zaratustra: “Onde está o raio que vos lambe com sua língua? Onde, a loucura com que deveríeis ser vacinados? Vede, eu vos ensino o super-homem: porque ele é esse raio e essa loucura!” (NIETZSCHE, 2006, p. 38).

8. Martin Heidegger, entre os anos de 1936 e 1940, deu várias preleções na Universidade de Freiburg tendo como foco o pensamento de Friedrich Nietzsche. Nesses encontros, propôs uma confrontação com a obra nietzscheana. Confrontação para Heidegger tem o caráter de uma crítica autêntica. Significa repensar o que fora pensado anteriormente e perseguir o sentido das palavras proferidas em sua força, o que Heidegger entende como um libertar-se para a possibilidade de uma nova abertura. A Vontade de Poder, cujo título não diz respeito apenas ao projeto de uma obra capital de Nietzsche, significa o essencial de toda a trajetória de seu pensamento. Afirma Heidegger: “Como o nome para o caráter fundamental de todo ente, a expressão ‘vontade de poder’ dá uma resposta à pergunta sobre o que afinal é o ente. Desde sempre essa é a pergunta da filosofia” (HEIDEGGER, 2007, p. 6).

9. Heidegger destacou três pontos fundamentais na construção da obra filosófica de Nietzsche: o eterno retorno, a vontade de poder e a transvaloração de todos os valores. O pensador diz que em Nietzsche há o co-pertencimento intrínseco desses três pontos. A doutrina da vontade de poder se confunde com a doutrina do eterno retorno e essa unidade, historicamente, é o vetor da transvaloração de todos os valores. A vontade de poder surge como resposta à pergunta diretriz da filosofia – o que é o ente – e conjuga-se com a apreensão de Nietzsche a respeito do ser, que é tido no seu pensamento como o devir. Escreveu Nietzsche: “cunhar para o devir o caráter do ser – essa é a mais elevada vontade de poder” (NIETZSCHE apud HEIDEGGER, 2007, ps. 19 e 20).

10. No ensaio "Quem é o Zaratustra de Nietzsche?", a partir de um trecho retirado do capítulo "O convalescente", Heidegger reconhece no personagem um porta-voz da vida, da dor e do círculo. Vida é a vontade de poder com a dor que lhe acompanha. O círculo, em sua forma anelar, por sua vez, configura o eterno retorno do mesmo. Heidegger define numa proposição a essência de Zaratustra como o porta-voz de “que todo real é vontade de poder que, enquanto criadora, padece e suporta a vontade que luta consigo mesma e assim se quer a si mesma no eterno retorno do igual” (HEIDEGGER, 2002, p. 89).

11. A vontade de poder, ao estar ligada à pergunta fundamental sobre o ser, corresponde ao “pensamento mais pesado” da filosofia, a que a ergue e a destrói. O eterno retorno remete à eternidade e ao instante em que se dá a pergunta pelo ser. Escreveu Heidegger:

"Eternidade não como um agora estático, nem tampouco como uma seqüência de agoras que se desenrolam até o infinito, mas como um agora que rebate em si mesmo: o que é isso senão a essência velada do tempo? Pensar o ser, a vontade de poder, como eterno retorno, pensar o pensamento mais pesado da filosofia significa pensar o ser como tempo. Nietzsche pensou esse pensamento" (HEIDEGGER, 2007, p. 20).


12. Como se co-pertencem o super-homem e o eterno retorno do mesmo? Sobre o eterno retorno, o “pensamento mais abissal” de Nietzsche, Heidegger, numa preleção intitulada "Nota sobre o eterno retorno do igual", ressalta que seu entendimento permanece enigmático. O pensador aponta dois caminhos evasivos de compreensão. No primeiro, o eterno retorno seria uma espécie de mística; no segundo, uma representação já há muito difundida na história do pensamento ocidental. O que está a ser pensado a partir do eterno retorno se vela para a metafísica. O pensador relaciona o enigma de Nietzsche com a essência da técnica moderna, atualizando-o em seu destinar-se no tempo ao formular a pergunta: “O que é a essência da máquina moderna senão uma variação do eterno retorno do igual?” (HEIDEGGER, 2002, p. 109).


BIBLIOGRAFIA


HEIDEGGER, Martin. A Origem da Obra de Arte. Tradução de Idalina Azevedo da Silva e Manuel Antônio de Castro. 2006.
--------------------------- Ensaios e Conferências. Traduções de Emmanuel Carneiro Leão, Gilvan Fogel e Márcia Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis: Vozes, 2002.
--------------------------- Nietzsche – Vol. 1. Tradução de Marco Antônio Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007.
MACHADO, Roberto. Zaratustra – tragédia nietzschiana. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001.
NIETZSCHE, Friedrich. Assim Falou Zaratustra – Um livro para todos e para ninguém. Tradução de Mário da Silva. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2006.
----------------------------- Ecce Homo – Como alguém se torna o que é. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo, Companhia das Letras, 2004.


Publicado no número 13 da Revista Garrafa da UFRJ.

terça-feira, 25 de dezembro de 2007

CANDEIA E A FILOSOFIA DO SAMBA


Antonio Candeia Filho, conhecido popularmente como Candeia, nascido em 1935, em Oswaldo Cruz, subúrbio do Rio de Janeiro, estação de trem da Central do Brasil, foi um sambista e compositor carioca que tocou profundamente na questão radical da identidade afro-brasileira. Entre tambores, bordões e refrões, com seu canto grave de partideiro, manifestou a luta corajosa pela causa do samba autêntico. Unindo num só coro transcendência e imanência, sua poética afirmou os valores mais genuínos do povo. Concomitantemente, a luz inspirada de sua consciência política se confundiu com a chama eterna do samba.

Candeia foi a voz da afirmação e da salvaguarda das raízes dos sambistas. Sua história vem do berço. Seu próprio pai era um sambista da Portela, a tradicional escola de samba de Oswaldo Cruz. Se Madureira, o conhecido bairro vizinho, já manifestava desde sempre sua vocação para o comércio, Oswaldo Cruz por sua vez exibia traços rurais, bastante típicos de uma vida interiorana. Para se ter idéia desse lugar da meninice de Candeia, vale ler o relato de seu biógrafo, João Baptista Vargens:

"Oswaldo Cruz, que se chamava Rio das Pedras, nome inspirado em um pequeno córrego que cruza o bairro, foi centro de reunião de grande parte do rebanho bovino consumido pela população carioca. O gado desembarcava do trem e, depois de uma rápida estada em um grande curral existente, marchava até o matadouro da Penha. Muitas histórias narrando feitos admiráveis de bois e boiadeiros até hoje povoam o folclore local" (VARGENS, 1987, p. 21).

Passada a infância bucólica, Candeia aos 17 anos já integrava com sucesso a ala dos compositores da Portela. Mesclando vocação e a necessidade de ter um bom emprego, o jovem compositor prestou concurso para a polícia. No exercício voluntarioso de sua profissão foi um policial duro que desconhecia limites. Tinha a fama de prender criminosos famosos e era respeitado e temido nas rodas da malandragem carioca. No entanto, uma cruel infelicidade mudou os rumos de sua vida: ao se envolver numa briga de trânsito, voltando de um pagode, foi atingido por tiros na espinha, o que o levou a sofrer uma paralisia nas pernas. A partir desse episódio infeliz, ocorrido no ano de 1965, sua vida mudou radicalmente. Houve uma metamorfose.

Segundo o helenista Eudoro de Souza, em Mitologia (1984), são três os arquétipos que presidem o impulso mítico: cosmogonias, catábases e metamorfoses. Candeia, aos 30 anos de idade, passou por dois desses estágios arquetípicos. O compositor se metamorfoseou em um outro, sendo ele mesmo, após sofrer uma drástica queda catabática. Afirma Eudoro que apenas os deuses e os heróis passam por catábases. O nosso herói, Candeia, ao ser baleado, teve que descer aos infernos para poder recomeçar sua trajetória. Diz Souza:

"Inferno é o nome que se dá a uma das possíveis correlações entre o homem e o mundo, ou antes, à impossível relação de um com o outro nos momentos privilegiados, em que “homem deste mundo” se desencontra com o “mundo deste homem”. É nome de uma situação liminar: eu já não sou o que fui, mas ainda não sou o que serei. Na liminaridade, já perdi o mundo em que vivia e ainda não ganhei o mundo em que vou viver" (SOUZA, 1984, ps. 58 e 59).

Sobre as conseqüências dessa dolorosa passagem na vida do compositor, escreveu João Baptista Vargens:

"Redesenhava-se uma vida em que desejos antigos viram-se frustrados e um sistema de símbolos, redimensionado, conduziu o compositor rumo à tentativa de um novo equilíbrio. Uma cadeia de palavras, ilimitada, vai libertar o policial severo. Uma torrente de acordes, dionisíaca, vai revitalizar o homem viril" (VARGENS, 1987, p. 47).

Candeia, sem sequer poder trabalhar, afasta-se por algum tempo da escola e das rodas de samba enquanto tenta recuperar o movimento das pernas em sucessivas operações. Três anos após o acidente foi então constatado pelos médicos que o compositor não mais tornaria a andar. Sua mulher, Leonilda, o consolou e o acolheu. Seus amigos, contrariando a tristeza que reinava, o reconduziram ao samba. Ao ser levado para cantar em diversas festas, o compositor passou a aparecer acompanhado de sua cadeira de rodas. Candeia, iluminado, compôs "De qualquer maneira", que surgiu como um hino para a sua volta ao mundo do samba:

De qualquer maneira
Meu amor eu canto
De qualquer maneira
Meu encanto eu vou sambar
Com os olhos rasos d'água
Ou com o sorriso na boca
Com o peito cheio de mágoa
Ou sendo a mágoa tão pouca
Quem é bamba não bambeia
Falo por convicção
Enquanto houver samba na veia
Empunharei meu violão
Sentado em trono de rei
Ou aqui nessa cadeira
Eu já disse eu já falei
Que seja qual for a maneira
Quem é bamba não bambeia
Falo por convicção
Enquanto houver samba na veia
Empunharei meu violão.


A partir de então, com novas e pungentes composições, a obra musical de Candeia cresceu em importância. Seus sambas passaram a ter a forte marca de um lirismo social e afetivo. João Baptista Vargens assim descreve a transição do compositor, após o incidente:

"Aos poucos vai Candeia reencontrando seu novo universo. Preso a uma cadeira, libera seu espírito. Alça vôos mais longos e mais altos. Percebe a essência. Canaliza suas potencialidades para a criação artística, recuperando seu mundo interior e refletindo seu mundo exterior" (VARGENS, 1987, p. 53).

Com a morte daquele Candeia irascível, nasceu outro. O renascido Candeia, tocado pela "Luz da inspiração":

Sinto-me em delírio
Luz da inspiração
Acordes musicais
Invadiram o meu ser, sem querer.
Me elevam ao infinito da paz
Sinto-me vazio
No ar, a flutuar
Eu já nem sei quem sou
A mente se une à alma
A calma reflete o amor
Nos braços da inspiração
A vida transformei de escravo pra Rei
E o samba que criei
Tão divino ficou
Agora sei quem sou.

Ao mesmo tempo em que cultivava com grande cuidado sua obra poético-musical, Candeia tornou-se também um ativista na defesa dos valores autênticos de seus pares. Na luta sem trégua pela afirmação do samba em suas raízes mais genuínas, o compositor converteu-se em uma referência política e as suas atividades ganharam uma nova dimensão. Candeia fundiu teoria e prática na construção de um sentimento de dignidade entre os sambistas, especialmente os negros. Importante fato histórico foi a fundação, ao lado de Élton Medeiros e de outros sambistas, do Grêmio Recreativo de Arte Negra e Escola de Samba Quilombo. Em matéria publicada no jornal Última Hora, de 7 de janeiro de 1976, assinada pelo jornalista Waldemar Ranulpho, estavam delineados os principais objetivos da Quilombo:

1. Desenvolver um centro de pesquisas de arte negra, enfatizando sua contribuição à formação da cultura brasileira;
2. Lutar pela preservação das tradições fundamentais, sem as quais não se pode desenvolver qualquer atividade criativa popular;
3. Afastar elementos inescrupulosos que, em nome do desenvolvimento intelectual, apropriam-se de heranças alheias, deturpando a expressão das escolas de samba e as transformam em rentáveis peças folclóricas;
4. Atrair os verdadeiros representantes e estudiosos da cultura brasileira, destacando a importância do elemento negro no seu contexto;
5. Organizar uma escola de samba onde seus compositores, ainda não corrompidos pela evolução imposta pelo sistema, possam cantar seus sambas, sem prévias imposições. Uma escola que sirva de teto a todos os sambistas, negros e brancos, irmanados em defesa do autêntico ritmo brasileiro (RANULPHO apud VARGENS, 1987, p. 75)

Além de escrever canções, gravar discos, cantar em rodas de partido-alto e ainda idealizar e fundar uma escola de samba alternativa aos padrões vigentes, Candeia, diante da distorção dos conceitos relativos ao samba, também publicou um livro sobre o destino das escolas de samba. Escola de Samba: Árvore que perdeu a raiz, foi escrito em parceria com Isnard, companheiro de lutas, também um antigo integrante da Portela. O livro, impresso em uma tiragem reduzida e lançado no ano de 1978, pouco antes de sua morte, vai muito além de uma proposta educativa e historiográfica na abordagem dos temas e das questões ligadas ao samba. Traduz-se muito mais por sua contundência, num verdadeiro manifesto contra a interferência externa nos destinos das agremiações tradicionais dos sambistas. Dentre as narrativas apresentadas pelo livro, encontram-se estudos importantes que dizem respeito a esse processo, como “O Samba e suas raízes”, “Criatividade do Sambista”, “A vida sócio-econômica do Sambista”, entre outros.

O pensador Walter Benjamin, no ensaio “O Narrador”, define um narrador pela sua “faculdade de intercambiar experiências” (BENJAMIN, 1985, p. 198). O pensador elege dois arquétipos que se interpenetram dialeticamente para definir a imagem de um narrador: o viajante e o sedentário. O narrador, segundo Benjamin, tem um senso prático. Seus ensinamentos e provérbios sugerem uma dimensão utilitária que é traduzida no ato de dar conselhos. Diz Benjamin: “o conselho tecido na substância viva da existência tem um nome: sabedoria” (BENJAMIN, 1985, p. 200). A narrativa é fruto de uma tradição oral e a sua forma comunicativa é artesanal, consistindo na relação entre o que narra e as ações experimentadas pela vida humana. O narrador, pela riqueza de seus ensinamentos morais, traduzidos a partir de suas próprias experiências e das experiências dos outros, é confundido com um sábio ou um mestre. Escreveu Benjamin sobre o narrador: “seu dom é o de poder contar sua vida; sua dignidade é contá-la inteira. O narrador é o homem que poderia deixar à luz tênue de sua narração consumir completamente a mecha de sua vida” (BENJAMIN, 1985, p. 221). Na figura de Candeia, considerado por todos um verdadeiro mestre, o homem erradio de outrora se transformou, devido à circunstância decisiva que o deixou paralítico, em um cultor sedentário. Candeia, citando e parafraseando Benjamin, é quando “o justo se encontra consigo mesmo” (BENJAMIN, 1985, p. 221). Os ensinamentos narrados pelo compositor espalharam-se não só no corpo de sua obra poético-musical, mas em depoimentos, imagens – o curta-metragem "Partido Alto", de Leon Hirszman, de que Candeia participou, é um exemplo – , no próprio livro que escreveu, e, segundo relatos de quem o acompanhou, em toda a sua trajetória pessoal e artística.

O sambista e escritor Nei Lopes (1992), em O negro no Rio de Janeiro e sua tradição musical, ao estudar a gênese do samba no Rio de Janeiro, diz sobre a existência de uma linha evolutiva que vem desde os batuques africanos dos povos bantos até as manifestações de partido-alto, em que Candeia encontrava-se inserido como um de seus principais cultores. Bem dizer que Candeia, além de ser um mestre do partido-alto, também compôs e gravou diversos tipos de sambas e até outros ritmos afro-brasileiros, como capoeira, maculelê e candomblé.

A atitude expressiva da arte de Candeia se assemelha muito ao que foi dito pelos estudiosos a respeito dos bantos africanos. Sobre o que o são os bantos, escreveu Nei Lopes em Bantos, Malês e identidade negra: “Sob a designação de bantos estão compreendidos praticamente todos os grupos étnicos negro-africanos do centro, do sul e do leste do continente que apresentam características físicas comuns e um modo de vida determinado por atividades afins” (LOPES, 1988, p. 86). Relata Nei Lopes que, nos anos 40, o missionário belga, Padre Placide Tempels, ao estudar os bantos da atual República do Zaire, notou

"a existência de uma filosofia fundamentada numa metafísica dinâmica e numa espécie de vitalismo que fornecem a chave da concepção do mundo entre os povos bantos. Nela, a noção de força tomar o lugar da noção de ser e, assim, toda a cultura banta é orientada no sentido do aumento dessa força e da luta contra sua perda ou diminuição" (LOPES, 1988, p. 122).

Nei Lopes aponta sobre o que pode ser entendido como o princípio, a arqué, de uma cultura de tradição oral entre os bantos:

"Escrevendo sobre os Nguni, nação banta da África do Sul, o Padre Mongamelli Mabona discorre sobre a importância, entre os africanos, da palavra como símbolo criador, como energia que gera e cria dimensões e realidades novas e através da qual se estabelecem pactos e alianças. Exemplificando, diz ele que em Nguni termos igama (nome) e ilizwi (som, voz, fala) significam antes de tudo 'força' "(LOPES, 1988, ps. 124 e 125).

A força do nome Candeia, fornecedora de metáforas em torno do elemento fogo, é marcante na trajetória do compositor. Nome tão significativo a ponto de se misturar com a sua personalidade ativa. O etnólogo Luis da Câmara Cascudo, em Tradição, Ciência do Povo, ao apresentar um estudo sobre os quatro elementos na cultura popular, escreveu que o fogo age

"em serviço do homem, aquecendo, iluminando, preparando alimentos, defendendo, criando a estabilidade da família. (...) A chama afastava os animais bravios e os fantasmas sedentos. Uma casa habitada era um Fogo, no cômputo das velhas relações demográficas, alcançando a primeira década do século XX. Ainda hoje, nos sertões ibero-americanos, na Ásia e na África, o tição aceso é uma companhia poderosa. Os monstros do Mato e do Medo não se aproximam" (CASCUDO, 1971, p. 137).


A obra musical de Candeia, posterior à sua conversão, é poética e de pensamento. Algumas composições são marcadas por elementos reflexivos que se equilibram no sabor melódico dos versos. Não é por acaso que uma de suas principais criações chama-se "Filosofia do Samba":


Pra cantar samba não preciso de razão,
pois a razão está sempre com dois lados.
Amor é tema tão falado,
mas ninguém seguiu nem cumpriu a grande lei:
cada qual ama a si próprio,
liberdade e igualdade onde estão, não sei.
Mora na filosofia, morou, Maria?
Morou, Maria! Morou, Maria...?!
Pra cantar samba vejo o tema na lembrança:
cego é quem vê só aonde a vista alcança.
Mandei meu dicionário às favas:
mudo é quem só se comunica com palavras.
Se o dia nasce, renasce o samba.
Se o dia morre, revive o samba.
Mora na filosofia, morou, Maria?
Morou, Maria! Morou, Maria...?!

"Filosofia do Samba" é um samba crítico em que o compositor destila seu pensamento enquanto canta. A letra possui cinco partes autônomas, que correspondem às quatro estrofes e ao refrão. Na primeira estrofe, sobre o ato de cantar samba, a razão está sempre com dois lados. A possibilidade dialética mora na co-pertinência das diferenças. Existem razões diversas. Uma só razão não serve ao equilíbrio do samba. A grande lei referida pelo compositor é a do amor próprio, antídoto supremo para o desamor. Num tom de ironia, pergunta-se pelos ideais revolucionários de liberdade e igualdade. A questão remete à ética, ao lugar desses ideais. No refrão, que rima as palavras femininas filosofia e Maria, evidencia-se o verbo morar. Mais uma vez, nesse caso, é levado ao ouvinte a questão da ética. Quando se pergunta à Maria se ela “morou”, a brincadeira com a gíria se confunde positivamente não só com o fato dela entender as afirmações propostas como também o de ela estar comprometida com o que está sendo dito. Não é só o simples entendimento que se quer de Maria, mas uma compreensão ativa e participante. A questão da memória é o tema da terceira estrofe. Também a do não-saber, do que não está onde somente a vista alcança, o que está além do entendimento imediato. Esse não-saber pressupõe a indagação criteriosa pelo saber que está além dos sentidos. Valoriza-se, desse modo, uma compreensão que ultrapassa a percepção sensorial. Na última estrofe, a afirmação da força do samba, que sempre renasce e desafia os limites do tempo.

O verbo renascer aparece em outra composição de Candeia: "A paixão segundo eu". O amor, tema tão falado, assim como o samba, também tem uma capacidade regenerativa. Ambos, na mística do compositor, renascem com o dia. "A paixão segundo eu" conduz a um eu que é o da experiência concreta, da vida vivida:

No amor não se vence,
por isto não pense
que estou derrotado,
não estou acabado.
Todo dia que nasce
renasce o amor,
no jardim desta vida,
esperança é flor.
Vou embora com Deus e Nossa Senhora (eu vou agora).
Vou embora com Deus e Nossa Senhora.
À tua traição deixarei meu perdão,
humildade eu levo no meu coração.
Eu tiro proveito da adversidade,
do doce, amargo, a cruel falsidade.
Vou embora com Deus e Nossa Senhora (e com a minha viola).
Vou embora com Deus e Nossa Senhora.
Na vida da gente nada se perdeu:
a razão da semente é que o fruto morreu
e o beijo de Judas valeu pra contar e cantar
a paixão segundo eu.
Vou embora com Deus e Nossa Senhora (e com a minha viola).
Vou embora com Deus e Nossa Senhora (eu vou agora).
Vou embora com Deus e Nossa Senhora (quem perdeu é que chora).


A metamorfose age como o ponto de mutação da poética de Candeia. Nos versos do compositor há o desejo de uma suspensão transcendente que visa aplainar o sofrimento do passado. As vicissitudes da vida encontram redenção espiritual no samba. "Preciso me Encontrar" traz esse desejo de mudança:

Deixe-me ir, preciso andar,
vou por aí a procurar
rir pra não chorar.

Quero assistir ao sol nascer,
ver as águas dos rios correr,
ouvir os pássaros cantar,
eu quero nascer, quero viver...

Deixe-me ir preciso andar,
vou por aí a procurar
rir pra não chorar.

Se alguém por mim perguntar,
diga que eu só vou voltar
quando eu me encontrar...

No universo de Candeia o encontro consigo mesmo e o reencontro com os seus se irmanam. O retorno ao lar é o encontro com a sua natureza mais próxima. O fogo aceso da própria existência revela-se humano na luta cotidiana de ser o que se é. O fogo como o agente da purificação no amor. O pensador Gaston Bachelard, em A Psicanálise do Fogo, fala dessa espécie de fogo purificador. Esse fogo, identificado com a alegria de uma paixão apaziguada, não é o que queima e destrói, mas o que ilumina. A chama de um afeto, tranqüilizante, repousante e benéfica, a que fora referida por Câmara Cascudo como a imagem aconchegante da casa. A casa de Candeia, que tornou-se famosa por receber sambistas em pagodes memoráveis. Corre a lenda que o compositor certa vez, celebrando a sua própria receptividade festeira, proclamou que: “se Candeia não pode ir ao samba, o samba vai até Candeia”. Diz Bachelard que “só um amor purificado faz descobertas afetuosas” (BACHELARD, 1994, p. 148). O poeta Rainer Maria Rilke afirma que “ser amado significa consumir-se na chama; amar é luzir de uma luz inesgotável” (RILKE apud BACHELARD, 1994, p. 156). Versa Candeia:

Silêncio, tamborim,
eu quero anunciar
o fim da minha dor.
Chegou o dia!
Repique tamborim,
eu quero festejar
porque o meu amor voltou pra mim,
porque o meu amor voltou pra mim...


BIBLIOGRAFIA:

BACHELARD, Gaston. A Psicanálise do Fogo. Tradução de Paulo Neves. São Paulo, Martins Fontes, 1994.
BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas Vol. I – Magia e técnica, arte e política. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo, Editora Brasiliense, 1985.
CANDEIA & ISNARD. Escolas de Samba – Árvore que esqueceu a raiz. Rio de Janeiro, Editora Lidador/SEEC-RJ, 1978.
CASCUDO, Luis da Câmara. Tradição, Ciência do Povo. São Paulo, Perspectiva, 1971.
LOPES, Nei. Bantos, Malês e Identidade Negra. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1988
--------------- O negro no Rio de Janeiro e sua tradição musical. Rio de Janeiro, Pallas, 1992.
SOUZA, Eudoro de. Mitologia. Lisboa, Guimarães Editores, 1984.
VARGENS, João Baptista M. Candeia – Luz da Inspiração. Rio de Janeiro, Funarte, Instituto Nacional de Música, Divisão de música popular, 1987.


Publicado nos anais do XI Encontro regional da Abralic, realizado na USP em 2007.







































POESIA E PENSAMENTO NA OBRA DE MURILO MENDES

Na conferência O que é isto – A Filosofia?, proferida em 1955, Martin Heidegger formulou que existe ao mesmo tempo uma aproximação originária e uma diferença fundamental entre poesia e pensamento, ambas pertencentes à tradições distintas

(...) "pelo fato de a poesia, em comparação com o pensamento, estar de modo bem diverso e privilegiado a serviço da linguagem, nosso encontro que medita sobre a Filosofia é necessariamente levado a discutir a relação entre pensar e poetar. Entre ambos, pensar e poetar, impera um oculto parentesco porque ambos, a serviço da linguagem, intervêm por ela e por ela se sacrificam. Entre ambos, entretanto, se abre um abismo, pois 'moram nas montanhas mais separadas' " (HEIDEGGER, 1979, p. 23).

O filósofo Gerd Bornhein, em um ensaio intitulado Filosofia e Poesia, fala de uma “verdade” filosófica contraposta às “verdades” da poesia. Explica Bornhein que num determinado momento histórico, entre os gregos, optou-se pela episteme em detrimento da doxa. Com isto, foi posta de lado a experiência cotidiana para que se pudesse trilhar com segurança a aventura teórica. Os caminhos da Filosofia então transformaram o logos em lógica. O discurso passou a ser medido pelo saber racional. Este fundamentou a epistemologia e as ciências, ditando os pressupostos básicos de toda certeza e correção. No entanto, outra voz, marginal, a da obra ensaística de Octavio Paz, percorreu caminhos diferentes e se fez ouvida nos poetas. Foi essa uma voz subterrânea e irresistível, a voz da poiesis, da passagem do não-ser para o ser, o dizer originário e originante. Uma voz que atuou na construção e na desconstrução de um mundo distinto. Um mundo de imagens, de alumbramentos e de visões, de admiração e de espanto diante das coisas e dos acontecimentos. Voz pronunciada pelos poetas, que em si mesma constitui-se no próprio acontecimento.

Portador dessa outra voz é Murilo Mendes. O poeta, nascido na cidade mineira de Juiz de Fora, em 1901, e falecido em Lisboa, em 1975, construiu em meio aos estertores do Século XX uma obra apaixonada e apaixonante, rica de imagens e questões. O seu primeiro livro, Poemas, publicado em 1930, foi logo recebido com louvor por Mário de Andrade. No artigo "A Poesia de 1930", Mário, alguns anos após o estardalhaço modernista, retratou o surgimento de quatro novos grandes poetas, todos eles adeptos da liberdade do verso: Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Augusto Frederico Schmidt e Murilo Mendes. O escritor destacou em Murilo Mendes o que chamou de um “intercâmbio de todos os planos” (ANDRADE, 2002, p. 53), atuando como um princípio de composição na sua poesia. Mário de Andrade, ao identificar a poética de Murilo Mendes com o vigor revolucionário do Surrealismo francês, comentou “a leveza, a elasticidade, a naturalidade com que o poeta passa do plano do corriqueiro pro da alucinação e os confunde” (ANDRADE, 2002, p. 54). O próprio Manuel Bandeira, por sua vez, alguns anos depois, na sua Apresentação da Poesia Brasileira, chamou Murilo Mendes de “o mais completo, o mais estranho e seguramente o mais fecundo poeta” (BANDEIRA, 1997, p. 458) de sua geração.

Laís Corrêa de Araújo, estudiosa da obra de Murilo Mendes, publicou um Ensaio Crítico, onde apontou e nomeou três grandes fases na obra de Murilo Mendes. "O Homem se faz verbo" corresponde aos primeiros livros de Murilo Mendes; seguem-se "O Verbo se Consolida" e "Plenitude e Concreção do Verbo", esses concernentes a trabalhos posteriores do poeta. Nos deteremos aqui inicialmente apenas na primeira fase selecionada pela ensaísta. São férteis neste primeiro momento de Murilo Mendes os caminhos originários de um diálogo entre poesia e pensamento, interesse de nosso trabalho. Laís Corrêa de Araújo escreveu que no livro de estréia de Murilo Mendes há

"um microcosmo do universo lingüístico do poeta, que viria dimensionar-se em sua obra posterior, através da abertura de expressão, a qual se permitiria todas as liberdades do ritmo amplo, da desarticulação do vocabulário, da violação da sintaxe, enfim, de um processo de dicção que logo se destacaria, pelo caráter individualizador e mesmo insólito, no quadro da poesia brasileira" (ARAÚJO, 2000, p. 70).

Notamos que o poeta desde cedo deixa em evidência sua postura diante do que é a força motriz de sua poesia, a que reside na luta incessante entre as forças opostas. O poema "Cantiga de Malazarte", publicado em Poemas, rico em imagens contrastantes, é uma espécie de ideário do caráter cosmogônico de sua poesia:

Eu sou o olhar que penetra nas camadas do mundo,
ando debaixo da pele e sacudo os sonhos.
Não desprezo nada que tenha visto,
todas as coisas se gravam pra sempre na minha cachola.
Toco nas flores, nas almas, nos sons, nos movimentos,
destelho as casas penduradas na terra,
tiro o cheiro dos corpos das meninas sonhando.
Desloco as consciências,
a rua estala com os meus passos,
e ando nos quatro cantos da vida.
Consolo o herói vagabundo, glorifico o soldado vencido,
não posso amar ninguém porque sou o amor,
tenho me surpreendido a cumprimentar os gatos
e a pedir desculpas ao mendigo.
Sou o espírito que assiste a criação
e que bole em todas as almas que encontra.
Múltiplo, desarticulado, longe como o diabo,
nada me fixa nos caminhos do mundo
(MENDES, 1979, p. 35).

Escrito na primeira pessoa, o poema é afirmativo na descrição de seus próprios caminhos. As sensações através dos sentidos – a visão, o tato e o olfato – são trazidas pela memória, a mãe das musas na Grécia antiga, matéria-prima do discurso poético. É evidenciada nesses versos de Murilo Mendes a importância de todas as coisas para a poesia e o reconhecimento de uma atitude livre diante dos destinos do mundo.

A cantiga evoca Malazarte, ou Pedro Malazarte, o herói folclórico oriundo de Portugal. Pedro Malazarte, ou Pedro Malas Artes, na verdade eram dois. Um, astuto e ardiloso, demoníaco, e o outro, mais popular nas terras lusas, tolo, trapalhão e desastrado. Diz Luis da Câmara Cascudo, em Vaqueiros e Cantadores, que: “Para o Brasil não emigrou Malas Artes nessa acepção desavisada e pulha. O nosso é um Malazarte vivo, inquieto, ávido de aventuras, inesgotável de recursos e de tramas, vencedor infalível de todos e de tudo” (CASCUDO, 1984, p. 233). O Malazarte de Murilo Mendes parece ter tanto as características do português confuso e desajeitado, das más artes, quanto as daquele que aportou no Brasil, aventureiro, destemido e sagaz. Malazarte, que é um personagem ambivalente, recusa fixar-se em definições imutáveis.

Murilo Mendes, no seu Ideário Crítico, afirmou: “Um grande artista deve conciliar os opostos” (MENDES apud ARAÚJO, 2000, p. 336). Heráclito, cujo pensamento evoca essa questão, sentencia no fragmento nº 8, traduzido por Emmanuel Carneiro Leão: “O contrário em tensão é convergente; da divergência dos contrários a mais bela harmonia” (HERÁCLITO, 1993, p. 61). No primeiro livro de Murilo Mendes há um poema que trata dessa dualidade tensionada, a mesma que acompanhou praticamente quase toda a sua obra. Chama-se "Os dois lados":

Deste lado tem meu corpo
tem o sonho
tem a minha namorada na janela
tem as ruas gritando de luzes e movimentos
tem meu amor tão lento
tem o mundo batendo na minha memória
tem o caminho do trabalho.

De outro lado tem outras vidas vivendo da minha vida
tem pensamentos sérios me esperando na sala de visitas
tem minha noiva definitiva me esperando com flores na mão
tem a morte, as colunas da ordem e da desordem
(MENDES, 1979, p. 36).


Em "Os dois lados", Murilo Mendes parte do corpo do homem que sonha o concreto e o trabalha em seus versos em oposição não só aos outros que o recebem cotidianamente como também à morte, a noiva definitiva, eternamente feminina, que o receberá mais adiante. Diante dessa perspectiva dual de vida e morte é que se erguem “as colunas da ordem e da desordem” que irão sustentar o corpo vivo de sua poesia.

O equilíbrio dos versos de Murilo Mendes, oscilando entre a entrega aos sentidos da terra e a necessidade de uma redenção espiritual, se faz numa harmonia dissonante que só a luta entre potências opostas pode proporcionar. Outro fragmento de Heráclito, o nº 60, diz: “Caminho, para cima, para baixo, um e o mesmo” (HERÁCLITO, 1993, p. 75). A poesia de Murilo Mendes aponta para o mesmo ao caminhar em direções opostas. Concomitantemente à impulsão ascética, dirigida à pureza das formas eternas, está o movimento que só a vida sendo vivida pode determinar. Nos versos do poeta, as coisas próprias da existência, em suas imperfeições e inconstâncias, se opõem ao anseio de uma ordem divina. Murilo Mendes elege as representações cristãs para dar vazão à esperança de se fixar em algo que desafie o tempo. A eternidade, que habita seus poemas, é alcançada mediante ao exercício constante da conversão cristã. O oponente mais fecundo dessa perfeição atemporal regida pelo eterno imutável é o caos. Será o caos que o crítico Alfredo Bosi viu surgir em constante oposição às forças eróticas e os impulsos de liberdade na sua obra? Ou mesmo um caos nietzscheano, propiciador de toda criação, que em Assim Falou Zaratustra é capaz de dar a luz a uma estrela dançante?

"O homem, a luta e a eternidade", também de Poemas, apresenta mais uma vez a luta inadiável de potências opostas:

Adivinho nos planos da consciência
dois guerreiros lutando com esferas e pensamentos
mundo de planeta em fogo
vertigem
desequilíbrio de forças,
matéria em convulsão ardendo pra se definir.
Alma que não conhece todas as suas possibilidades,
o mundo ainda é pequeno pra te encher.

Abala as colunas da realidade,
desperta os ritmos que estão dormindo.
A luta! Olha os guerreiros se esfacelando!

Um dia a morte devolverá teu corpo,
minha cabeça devolverá meus pensamentos ruins
meus olhos verão a luz da perfeição
e não haverá mais tempo
(MENDES, 1979, p. 38).


A alma, em toda a sua grandeza, se choca com os desígnios terrenos do homem no plano limitado do tempo. A morte surge como a planificação pacífica e a resolução final desse embate. O poeta, ao assumir sua função social, é encenado tal qual um adivinho, isto é, aquele que se antecipa ao fluxo dos acontecimentos. No caso do poema muriliano, tal antecipação ocorre frente ao conhecimento e à reflexão metafísica. Sócrates, no diálogo Fedro, de Platão, ao identificar a loucura – ou manía – com Eros, enuncia quatro tipos de loucura divina. A primeira delas é justamente a relativa à arte mântica, isto é, o dom da adivinhação, presidido pelo deus Apolo. As outras são: a iniciação nos mistérios, de Dioniso; a poética, das Musas; e, finalmente, a amorosa, de Eros e Afrodite. Todas essas manifestações encontram-se radicalmente imbricadas nas imagens transfiguradas dos versos de Murilo Mendes.

O poeta, em "O homem, a luta e a eternidade", se refere aos "planos da consciência", que são feitos de “esferas e pensamentos” elevados, remetendo ao jogo das perfeições pitagórico-platônicas. A resultante é uma projeção imagética que luta ardentemente com as forças trágicas da vida. A eternidade se apóia numa harmonia celestial, como a que é descrita por Platão no diálogo A República. A lei divina a reger os destinos humanos, colocando-os sob a égide de um julgamento superior. O esquecimento das almas como condição para o re-encarnado, assumindo o movimento que se estende para além da temporalidade.

Murilo Mendes, em "Solidariedade", publicado no livro O Visionário (1941), perfila algumas importantes filiações de sua poesia. O poeta se investe das forças opostas que se encontram solenemente na profanação:

Sou ligado pela herança do espírito e do sange
Ao mártir, ao assassino, ao anarquista.
Sou ligado
Aos casais na terra e no ar,
Ao vendeiro da esquina,
Ao padre, ao mendigo, à mulher da vida,
Ao mecânico, ao poeta, ao soldado,
Ao santo e ao demônio,
Construídos à minha imagem e semelhança
(MENDES, 1979, p. 62).


No poema são percebidas as identidades e diferenças que conjugam a contradição fundamental entre as imagens da santidade e as subtrações demoníacas. Ambas as forças a agirem solidariamente numa oposição que se dá ora pacífica ora sangrenta. Tais poderes têm uma potência impulsionadora que irrompe violentamente nos versos. A trágica herança corresponde à união primordial de céu (espírito) e terra (sangue), que desde tempos imemoriais é matriz geradora de todo sentido poético.

No livro Tempo e Eternidade (1935), em co-autoria com Jorge de Lima, Murilo Mendes radicaliza sua busca ao absoluto. A eternidade é assumida integralmente em versos como os de Filiação:

Eu sou da raça do Eterno,
Fui criado no princípio
E desdobrado em muitas gerações
Através do espaço e do tempo.
Sinto-me acima das bandeiras,
Tropeçando em cabeças de chefes.
Caminho no mar, na terra e no ar.
Eu sou da raça do Eterno,
Do amor que unirá todos os homens:
Vinde a mim, órfãos da poesia,
Choremos sôbre o mundo mutilado
(MENDES, 1959, ps. 123 e 124).


O poema conduz seu discurso ao princípio das coisas, lá onde pode ser arrancada a voz primordial da poesia. Realiza o tempo mítico, originário, que desafia o contingente e promove o encontro com a unidade. Encontro afirmativo e também doloroso. O “mundo mutilado” é o mundo dividido, circunstancial, das bandeiras e dos chefes. O mundo assombroso e assombrado é o mesmo do momento histórico do poema, situado num contexto de duas grandes guerras, pelas quais chorava a eternidade. A paz haveria que nascer da consciência ao percorrer os caminhos sangrentos. Em "Comunicantes", outro poema de Tempo e Eternidade, há a confissão de uma filiação ao possível projeto poético de uma eternidade cristã:

Eu amo minha família sobrenatural
Aquela que não herdei
Aquele que ama o Eterno.
São poetas, são musas, são iluminados
Que vivem mirando os seus fins transcendentes.
O mundo, minha família sobrenatural não te possuiu.
Minha angústia vive nela e com ela.
E eu formarei poetas no futuro
À sua imagem e semelhança.
E todos ajuntando novos membros ao corpo
De que o Cristo Jesus é a cabeça
Irradiarão as palavras do Eterno
(MENDES, 1979, p. 74).

A suspensão do tempo e do espaço na obra de Murilo Mendes, apoiada na idéia da eternidade, corresponde às idéias do pintor Ismael Nery, grande amigo e mentor do poeta. Nery, cuja pintura dialogou com as idéias surrealistas então em voga na Europa, formulou uma filosofia de forte influência cristã que Murilo aderiu. Sobre o pensamento de Ismael Nery, chamado de “essencialista”, fundamental para a conversão de Mendes, escreveu Manuel Bandeira:

"Segundo Ismael Nery, o homem deve sempre procurar eliminar os supérfluos que prejudicam sempre a essência a conhecer: a essência do homem e das coisas só pode ser atingida mediante a abstração do espaço e do tempo, pois a localização num momento contraria uma das condições da vida, que é o movimento. Um essencialista deve colocar-se na vida como se fosse o centro dela para que possa ter a perfeita relação das idéias e dos fatos" (BANDEIRA, 1997, p. 459).


O cristianismo de Murilo Mendes não comunga com os dogmas seculares da Igreja Católica. Prefere corresponder a uma visão do absoluto capaz de consagrar eventos cotidianos e prosaicos. Aproxima-se da mística da Idade Média, imortalizada na obra de Mestre Eckhart. Mística que buscou incessantemente alcançar a união divina nas pequenas e nas grandes coisas. Assim diz o "Poema Essencialista", que fora dedicado ao escritor e dramaturgo Aníbal Machado:

A madrugada de amor do primeiro homem
O retrato da minha mãe com um ano de idade
O filme descritivo do meu nascimento
A tarde da morte da última mulher
O desabamento das montanhas, o estancar dos rios
O descerrar das cortinas da eternidade
O encontro com Eva penteando os cabelos
O apêrto de mão aos meus ascendentes
O fim da idéia de propriedade, carne e tempo
E a permanência no absoluto e no imutável
(MENDES, 1959, p. 136).

O poema, ao falar sobre o fim da propriedade, pode ser interpretado simultaneamente como comunista e cristão. Aponta para uma metafísica que tende ao absoluto. Crê ao mesmo tempo na promessa do fim do sofrimento humano através da justiça social e na redenção pela boa morte.

O título do livro Os Quatro Elementos (1938) traz à luz o pensador trágico Empédocles. Foi ele o primeiro a formular a concepção da natureza que se transforma oscilando entre quatro elementos diversos: terra, água, ar e fogo. Empédocles, relatado por Nietzsche em A Filosofia Trágica dos Gregos, é um reformador de influência pitagórica que à sua época pregou uma purificação através de um retorno à unidade, procurando curar os homens através do amor à natureza e da compaixão diante de um mundo de tormento e contradição. Profeta espiritual errante que quis a abolição da propriedade numa sociedade que valorizasse acima de tudo o amor fraternal, Empédocles, ao mesmo tempo crente nos deuses e nos homens, foi incompreendido e banido da polis pela sua dupla filiação.

Entre os opostos complementares mais contundentes nos versos do poeta estarão sempre as imagens da vida e da morte. Como as que aparecem nas "Antielegias n. 1, 2 e 3", publicadas em Os Quatro Elementos, onde o poeta se vê diante do dilema trágico da mortalidade e o funde pateticamente com os sentidos da vida.

Antielegia n. 1

O dia e a noite são ligados pelo prazer
E pelas ondas do ar
A vida e a morte são ligadas pelas flores
E pelos túneis futuros
Deus e o demônio são ligados pelo homem
(MENDES, 1959, p. 142).

Antielegia n. 2

Olho para tudo
Com o olhar ambíguo
De quem vai se despedir do mundo
Eis a última curva o último filme.
Eis o último gole d’água a última mulher
Eis o último fox-blue

Já estou sentindo
As violetas crescerem sobre mim.
(MENDES, 1959, p. 144).

Antielegia n. 3

As magnólias avançam com um ímpeto inesperado
São ombros nus é o luar o vidro de veneno
Deve haver um homicídio uma pergunta à esfinge
Um ultimato ao sonho um arroubo do universo,
À meia-noite em ponto bate o mar na varanda
É impossível deixar de acontecer alguma coisa
Há uma espera vã – raptaram as nebulosas.
(MENDES, 1959, ps. 157 e 158).

A imagem da morte nas "Antielegias" está no sentido das flores que crescem e avançam. Se o caminho do espírito está nas alturas e na eternidade, o caminho do corpo do homem é a terra. A angústia assumida nos versos do poeta talvez seja a mesma de Empédocles diante do seu próprio fim e do fim em si mesmo. Há mortes em vida e é preciso poeticamente se entregar às metamorfoses. Morrer em vida é necessário para viver de novo e cada vez mais, aceitando intensamente a condição de ser mortal. Pois, como dizem os versos heraclíticos de "Reflexão n. 1":

Ninguém sonha duas vezes o mesmo sonho
Ninguém se banha duas vezes no mesmo rio
Nem ama duas vezes a mesma mulher.
Deus de onde tudo deriva
E a circulação e o movimento infinito.
Ainda não estamos habituados com o mundo
Nascer é muito comprido.



BIBLIOGRAFIA


ANAXIMANDRO, PARMÊNIDES E HERÁCLITO. Os Pensadores Originários. Petrópolis: Vozes, 1990.
ANDRADE, Mário de. Aspectos da Literatura Brasileira. Belo Horizonte: Livraria Itatiaia, 2002.
ARAÚJO, Laís Corrêa de. Murilo Mendes. São Paulo: Editora Perspectiva, 2000.
BANDEIRA, Manuel. Seleta de Prosa. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1997.
CASCUDO, Luis da Câmara. Vaqueiros e Cantadores. Belo Horizonte: Livraria Itatiaia, 1984.
HEIDEGGER, Martin. O que é isto – A Filosofia? In: Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1994.
MENDES, Murilo. Poesias (1925-1955). Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1959.
---------------------- Antologia – O Menino Experimental. São Paulo: Summus Editorial, 1979.


Publicado na Eutomia - Revista On-line de Literatura e Linguística da UFPE - em 2008.

EXPERIÊNCIA E LINGUAGEM NA POESIA DE CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

Giorgio Agamben, em Infância e História: destruição da experiência e origem da história (2005), sugere uma passagem da linguagem da experiência a uma experiência com a linguagem a atuar poeticamente num trânsito vital. A experiência é a pedra de toque no caminho de Carlos Drummond de Andrade, que canta: “O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes, a vida presente” (1974, p. 55). Nossa matéria aqui é ensaiar a experiência e suas relações com a linguagem na obra de Drummond, tomando-a como ponto de partida dois poemas que se oferecem como chave de compreensão de sua poesia a partir de seu obrar: "Consideração do poema" e "Procura da poesia". Em seguida, apresentar três faces distintas da crítica que dialogou com a poesia de Drummond como a linguagem da experiência, a partir de textos de Antonio Candido, José Guilherme Merquior e Haroldo de Campos, acenando para a convivência complementar de suas posições.

A experiência com a linguagem em Drummond parte do eu e nele se compagina. Ao longo da trajetória do poeta, a consciência desse eu se vê em constante transformação diante do mundo e de sua poesia. O jogo drummondiano é justamente um trânsito estabelecido entre a experiência com a linguagem e a linguagem da experiência. O poeta amadurece suas posições por permanecer atado às duas perspectivas. O eu vivido, traduzido em experiência, é o mesmo que se arrisca no verso, experimentando-se como criação essencialmente inaudita da linguagem. Na busca de Drummond, a experiência da vida vivida e o experimentar-se do poema enquanto linguagem se identificam em sua inseparabilidade. Na experiência com a linguagem, o eu que persiste é o mesmo que se deixa abandonar. A subjetividade, a partir da dimensão da linguagem, torna-se encenação na sua obra. Sem a linguagem não haveria sequer a possibilidade dessa pertinência.

A experiência da linguagem na poesia

Passamos agora a ler os dois significativos poemas, férteis para a compreensão do jogo drummondiano com a linguagem: “Consideração do poema”[1] e “Procura da poesia”[2], ambos de A Rosa do Povo (1945).

“Consideração do poema” é a liberdade da palavra. A libertação da poesia pela poesia. O eu grafado é o poeta, o experimentador, que não se vê apenas diante da linguagem, mas com a linguagem. Há um sentimento de solidariedade para com ela e para com os outros poetas. Uma convivência a partir da única experiência possível: a  poesia, quiçá irresistível ao poeta. Assim, a fusão de poesia e vida reside na confissão de uma vida inteira. A experiência se emaranha com a realização humana em seu percurso, habitando o limiar ilimitado de sua travessia poética. Palavras como “matéria” – a palavra, que é matéria de poesia, “viagem” – a travessia do poeta, o seu “ser-no-mundo”, e “mortal” – a condição da finitude do homem, conduzem à sábia serenidade de um acatamento do próprio destino.

O poema começa negando. Nega para em seguida afirmar a carne e o corpo. Corpo que vem de encontro à palavra. A palavra é o corpo. Nasce livre. Vive, matéria, e etérea. Não mais lhe importa a pedra, a sua dureza. O poeta é ele mesmo e o seu coração não é maior que o mundo. Mas nele moram outros poetas, seus irmãos. Sua vida há de ser dividida (ou multiplicada) fraternalmente. A voz do poeta deve ressoar com as vozes dos outros poetas no devir da linguagem. A poesia, como a vida, é reunidora e quer unificar.

A possibilidade do poema prova o sabor da linguagem. O poema não pertence ao poeta a não ser na ilusão precária de sua posse. Nele, e a partir dele, o eu se quer equilibrado, com os pés no chão, iluminando o caminho que o abriga. O claro diante do enigma. Se a poesia ocorre em toda parte, como recusá-la? O destino se vê no poema e a ele se funde. O poeta harmoniza opostos e mostra-se completo nos seus versos. Amadurece.

Em “Procura da poesia” há a recusa do tema. A poesia transcende, vive em toda parte. Emana. A experiência da poesia consiste em penetrar surdamente no reino das palavras. Se acaso o poema emudecer, tornando-se obscuro, que se cultive com paciência a gestação de seu sentido. No silêncio diante do poema reside toda a sua aceitação. Em “Procura da poesia” aparecem as imagens íntimas do recolhimento, como a noite, o sono e o silêncio. Também as de umidade, que remetem ao conforto uterino, a de um rio, que implica movimento, e, por fim, a de transformação. No correr desse rio a metamorfose dinâmica da atividade poética. Metamorfose não só do verso, mas da vida inteira do poeta. Forma e fundo são inseparáveis na linguagem da experiência – a procura – com a experiência da linguagem – a consideração.

A linguagem da experiência na crítica

O diálogo da obra de Carlos Drummond de Andrade com a crítica literária, na voz de importantes ensaístas, como Antonio Candido, José Guilherme Merquior e Haroldo de Campos, nos ajuda a transitar na circularidade que envolve a linguagem da experiência e a experiência com a linguagem. Reconhecendo o sentido poético desses pensadores é que confiamos nossa entrega compreensiva da poesia de Drummond a partir de suas afirmações conceituais.

O ensaio “Inquietudes na poesia de Drummond” (1965), de Antonio Candido, fala de um percurso que se dá entre as inquietudes do poeta e uma alcançada serenidade com a aceitação da morte. As inquietudes, nesse caso, são o material concreto sobre o qual o poeta trabalha.

Na tensa dialética entre voltar-se ao eu e abrir-se ao mundo está a inquietude dos primeiros livros de Drummond demostrada pelo crítico. Ao efetuar o registro do mundo a partir de si e das coisas que o cercam, o poeta revela uma certa incapacidade de aderir-se à vida. O que é dito pelas palavras e o que é feito na prática do cotidiano se mostram nos seus versos. A poesia de Drummond, no início de seu percurso, assume uma forte desconfiança diante das coisas, dando-nos a impressão de um profundo egotismo. Sua personalidade é cindida e exposta a ponto de ser mistificada. Diante do abismo existencial dá-se a recorrência de um descontentamento.

A inquietude, ao atuar diretamente no processo de composição do poeta, irá se resolver dialeticamente na arte dos seus versos. Antonio Candido prevê nessa operação uma síntese. A sensação de estranheza, calcada na incapacidade do eu em harmonizar-se com o mundo gera a imagem da imperfeição. A conseqüência, diz Candido, é o “eu todo retorcido”, em que a torção é “um núcleo emocional a cuja volta se organiza a experiência poética” (CANDIDO, 1995, p. 115). Essa torção, resultante de uma cisão psíquica atuante no poeta, é o resultado expressivo da fusão das experiências de vida e de poesia. Ambas, vida e poesia, orientando-se num mesmo sentido, seguindo e perseguindo o fluxo das palavras, sua matéria mais precisa.

Candido reconhece que há em Drummond uma “meditação constante e por vezes não menos angustiada sobre a poesia” (CANDIDO, 1995, p. 134). A busca do poeta por uma ordem, em face da grande desordem que tanto o atormenta, oscila nas imagens do passado e do presente. O poeta busca o passado como tentativa de ordenar a existência através dos seus laços de sangue. Por isso o reconstrói através do fluxo das memórias familiares, buscando obter no sentido da vida de seus antepassados o seu próprio sentido. Na simultaneidade de passado e futuro, vivificados e compartilhados os sentimentos, o culto à tradição familiar é a tentativa de explicar o inexplicável da existência. Assim, o poeta, peremptoriamente, a partir de suas memórias, pode ordenar o mundo ao esquivar-se de suas imperfeições.

Não apenas a subjetividade do poeta se vê torta. A realidade que se apresenta também. A apreensão do destino individual se enreda inevitavelmente na malha das circunstâncias que o cercam. A injustiça social leva Drummond a tratar dos acontecimentos de um mundo avesso e caduco. Egoísmo, solidão e incomunicabilidade são os reflexos desse estado de coisas. A mísera condição humana é posta em relevo ao serem reportados nos seus versos os dramas cotidianos. O poeta os observa com agudeza. Sua presença é íntegra e contém uma dose de piedade para com os seus semelhantes. Drummond reage ao medo causado pelos ardis do mundo com o signo da esperança. Oferece uma flor aos transeuntes de uma rua movimentada. Crê na redenção do homem, em sua humanidade, e adere ao socialismo, tendo-o como uma perspectiva viável. Em Sentimento do Mundo (1940) e A Rosa do Povo, Drummond realiza uma literatura participante onde os problemas do mundo são por ele testemunhados e questionados. O seu eu, tão sofrido pela incerteza, vê a possibilidade de se redimir na medida em que o outro também se redime. O poeta é solidário. Afirmou Candido:

“O desejo de transformar o mundo, pois, é também uma esperança de promover a modificação do próprio ser, de encontrar uma desculpa para si mesmo. E talvez essa perspectiva de redenção simultânea explique a eficácia da poesia social de Drummond, na medida em que ela é um movimento coeso do ser no mundo, não um assunto, mediante o qual um vê o outro. O seu cantar se torna realmente geral porque é, ao mesmo tempo, profundamente particular” (1995, p. 127). 

Drummond, no curso de sua obra, ao penetrar profundamente na vida autônoma das palavras, pôde dissolver o seu mistificado eu, herdeiro direto do cartesianismo, e suas implicações sociais, na correnteza da linguagem. Seu retorno à fonte originária das palavras é o fluir de sua própria experiência. A vida sendo vivida se funde com a experiência singular do poeta. Na busca mais elementar de seu ofício, é evidente que o poeta possuía nas palavras a sua matéria-prima. No exercício de sua dignidade cotidiana, Drummond clama pela melhor palavra, procedendo sempre no intuito de lhe dar vitalidade e lhe conferir sentido. Como afirmou Antonio Candido, “nas mãos do poeta o lugar comum se torna revelação, graças à palavra na qual se encarnou” (1995, p. 140). Pelo jogo infinito das palavras é que o homem Drummond se orienta. O entendimento do mundo se refaz na medida em que seus versos são engendrados. Sua experiência de vida é tecida na experiência da poesia. Vida e poesia constituem-se enrodilhadas na obra. Unidas, seguem os passos de um mesmo caminho. O ser que permanece é o mesmo que se transforma nos versos. A poesia de Drummond é toda feita desse encontro de ser e linguagem. Candido vê a diretriz de todo esse processo como um diálogo progressivo dos estados psíquicos do poeta com a formalização do verso. Escreveu o crítico:   

“Talvez seja mais importante a transformação das inquietudes, gerando certa serenidade expressa não apenas pelo significado da mensagem, mas pela regularidade crescente da forma, a que o poeta parece tender como fator de equilíbrio na visão do mundo. Entretanto, essa serenidade é também fruto de uma aceitação do nada - , da morte progressiva na existência de cada dia; da dissolução do objeto no ato poético até a negação da própria poesia” (1995, p. 143).

Candido notou que na obra de Drummond a superação da inquietude que se mostra na exacerbada subjetividade e se resolve na forma regular do verso pela compreensão da finitude da vida. O traço existencial, bastante acentuado nos versos de Drummond, nos leva a um outro ensaio, Notas em função de Boitempo (1969), de José Guilherme Merquior. Nesse texto, vemos um poeta eminentemente filosofante. Merquior, ao situar o poeta no contexto de seu aparecimento, observa que Drummond se destacou do quadro modernista ao problematizar seu verso, levando-o a um tom de seriedade inexistente até então entre os poetas do movimento. O Modernismo de 1922, para Merquior, apresentou uma “mescla estilística”, que é um tipo de discurso híbrido, tal qual foi batizado por Erich Auerbach como um

“[...] estilo impuro, porque contrariamente aos preceitos da poética do classicismo, aspira à apresentação de acontecimentos, ou de situações, sérios, trágicos ou problemáticos, mediante o emprego de uma linguagem prosaica ou “vulgar” – por oposição à terminologia aristocrática a que a norma clássica, através da observância da regra de separação hierárquica dos estilos (nobre, médio e vulgar), reservava, em exclusividade, o domínio da tragédia, da épica e da lírica” (1978, p. 123).
   
O Modernismo, ao romper com a tradição literária brasileira calcada no academicismo parnasiano, instaurou uma nova forma de dicção, baseada numa prosa poética do cotidiano em consonância com os impulsos líricos. Drummond, que publicou seu primeiro livro alguns anos após a Semana de Arte Moderna, intensificou a valorização do discurso irônico, tão comum nas fileiras do movimento. No entanto, o poeta se diferenciou dos modernistas não apenas por hipertrofiar a ênfase humorística, mas em acentuar o grau de problematicidade diante dos fatos. A poesia de Drummond transitou paradoxalmente entre uma realidade que nada possuía de nobre e a solene seriedade diante dos acontecimentos. Merquior nos fala de um “plano de inédita complexidade psicológica e de rara densidade de pensamento” (MERQUIOR, 1978, p. 124) alcançada nos seus versos.

Aos poucos, porém, o poeta promoveu a suspensão da “mescla estilística” do Modernismo, mencionada por Merquior. A poesia de Drummond cada vez mais passou a ganhar tons sérios, principalmente a partir de A Rosa do povo. Em Boitempo (1968), porém, os versos de Drummond não só ganham os traços de uma prosa narrativa, já antes ensaiados em Lição de Coisas (1962), como também recuperam o esquecido hibridismo do estilo modernista. A impureza da dicção, formulada por Auerbach, passa novamente a assumir a cena de sua poesia. Ao retomar o meramente cômico das coisas, a afiada e crescente ironia de Drummond é amenizada e, conseqüentemente, o “choque do mundo”, motivo recorrente em sua obra, é minimizado. Merquior chama atenção a um “ludismo do puro ver” contido nos versos de Boitempo.

Em A falta que ama (1962), porém, Drummond retoma com força a linha filosófica deixada para trás em Boitempo. Diz Merquior isso será sem o abandono da mescla estilística que o poeta havia reconquistado anteriormente. O crítico atenta que na retomada da “musa filosófica” realizada nos versos de A falta que ama, a procura ontológica a partir do ego é substituída pela dimensão da vida-surpresa. A concepção vivencial do tempo, antes formulada pelo sujeito da procura, dá lugar a uma temporalidade cósmica. Afirma Merquior que esse movimento do poeta remete a um sentido que vai a um além-da-procura. O tempo do cogito, que nos limites da metafísica ocidental, é encarnado na vontade de poder nietzscheana, finalmente se entrega ao tempo do mundo. Transcender a condição humana, com a renúncia dos limites do eu, permite ao poeta de A falta que ama participar de uma nova ética do conhecer. O estatuto da procura, outrora dominante na obra de Drummond, é convertido “em prospecção do ser sempre inédito, sempre maior que o registro humano” (MERQUIOR, 1978, p. 141). Merquior se refere a esse processo nos versos de Drummond como uma integração órfica, cuja epifania é resultante do naufrágio do espírito crítico centrado no ego. O crítico vê nessa passagem a inserção da poesia de Drummond no centro da problemática assumida pelos grandes pensadores de sua época. Sobre essa transição que sofre a poesia de Drummond, para além da procura auto-centrada, Merquior adverte que seria um erro acreditar que ela signifique uma “marcha para a verdade”, pois “a verdade poética substitui as opções exclusivas da investigação teórica pela justificação mais ampla da variedade contraditória da experiência” (1978, p. 144).

Já Haroldo de Campos, em “Drummond, Mestre de Coisas” (1964), artigo que focaliza o lançamento simultâneo do então inédito livro de poemas Lição de coisas e de uma Antologia Poética (1962) de Drummond, liga Drummond a outro Andrade, o modernista Oswald, no que diz respeito à criação de novas formas poéticas, identificando-os a uma postura de vanguarda. Certos procedimentos programáticos do poeta observados por Campos, como a busca pela síntese numa operação de redução da linguagem, são exemplos dessa aproximação, que se estende, sob esse ponto de vista, aos preceitos orientadores dos concretistas. Campos, quando descreve esse princípio ativo na poesia de Drummond, nos diz um pouco sobre o amadurecimento do poeta atrelado à potência de sua criação:

“Drummond é antes de mais nada [...] um inventor (nele tudo é palavra, já observou Décio Pignatari), e por isso mesmo, há nele essa capacidade rara de transferir mesmo as efemérides mais íntimas para o horizonte do fazer, de celebrá-la então não em “festa”, mas em criação, na “luta corpo-a-corpo com a palavra”, que deve ser, aliás, em poetas como ele, o secreto exercício para a perene juventude do espírito (CAMPOS, 1978, p. 246)”. 

A experiência com a linguagem que realiza Drummond não pertence apenas a uma determinada fase de sua poesia. Campos chama a atenção para uma “concreção” lingüística que percorre toda a obra de Drummond, lembrando que ela se dá desde o consagrado poema No meio do caminho[1], que é do seu livro de estreia, Alguma Poesia (1930).

Campos destacou diversas imagens recorrentes de toda a obra do poeta, ligando-as a uma postura analógica de Drummond na arrumação de seus versos. São essas, para o crítico, as coisas (concretas), que sobressaíram na sua leitura:

“1) o indivíduo; 2) a terra natal; 3) a família; 4) amigos; 5) o choque social; 6) o conhecimento amoroso; 7) a própria poesia; 8) exercícios lúdicos; 9) uma visão, ou tentativa de, da existência, tudo correspondendo, em nomenclatura mais translata, a: 1) um eu todo retorcido; 2) uma província: esta; 3) a família que me dei; 4) cantar de amigos; 5) na praça de convites; 6) amar-amaro; 7) poesia contemplada; 8) uma, duas argolinhas; 9) tentativa de exploração e de interpretação do estar-no-mundo” (1978, p. 252).  

O crítico afirmou que, dessas imagens que catalogou, “o total gera, para quem se dispuser a meditá-lo, um ideograma crítico da obra de Carlos Drummond de Andrade” (CAMPOS, 1978, p. 252).

Drummond opera uma poética bifásica que reside na oscilação entre uma poesia de reflexão crítica e uma poesia de participação, chamadas por Campos de poesia-poesia e poesia-para, respectivamente. Na poesia-poesia, a experiência de Drummond com a linguagem que se precipita criticamente, centrada na construção do eu, tem a certeza de um pertencimento social como aliada. Drummond não rejeita o “pesadelo da história” e prefere corajosamente ir com as palavras ao seu encontro. Assim, o sentimento do mundo se enreda com as escolhas formais do poeta. A poesia-para, poesia de participação, tanto é a que se insere no contexto pragmático do uso do signo como experimento de linguagem quanto a que se move no plano existencial e adquire o sentido de um co-pertencimento indivisível com a palavra.

A visão progressista no sentido de uma dialética, mostrada por Antonio Candido, passa a idéia de uma formação poética no seu curso de desenvolvimento histórico. A experiência com a linguagem é submetida ao operar de uma linguagem da experiência retorcida e incompleta, onde o fundo psicológico e o envolvimento social do poeta atuam como impulsionadores vitais. Na trajetória de Drummond, após embates heróicos consigo mesmo e com as palavras, dá-se o alcance de uma serenidade que, entre outros desdobramentos, lhe devolve o gosto esquecido pelas formas tradicionais. A visão panorâmica de Candido sobre a obra de Drummond, sob a perspectiva de seu desenvolvimento, admite um programa bem definido que gira em torno da compreensão do eu e do mundo ao redor por parte do poeta, no qual a resolução formal pode ser entendida como a conseqüência de um determinado estado de espírito do poeta.

José Guilherme Merquior, a partir do ponto de vista da linguagem em desdobramentos mesclados, que vão do cultivo da doxa ao da epistéme, capta a vigência de uma “musa filosófica” na poesia de Drummond. A oscilação de sua presença ou de sua ausência serve como um indicador das intenções do poeta no percurso de suas realizações.

Haroldo de Campos, por sua vez, se move enfaticamente nos horizontes da estrutura e da forma. A opção pela formalização como esquema organizante da linguagem veicula o poeta a um sentido programático e pragmático. Deste modo, o eu permanece centrado como o sujeito da experiência com a linguagem, assumindo o controle absoluto de seus experimentos estruturantes.

Notamos, ao transitar nas diferentes posições críticas frente à obra de Drummond, que a experiência com a linguagem vigora no jogo pendular entre o experimento subjetivo e a experienciação do humano revelado na voz do poeta. A experiência com a linguagem é, desse modo, fusionada à linguagem da experiência, constituindo-se no arqué, no princípio atuante, de sua poesia. A indistinção da experiência com a linguagem com a linguagem da experiência sempre pautou a obra de Drummond desde o seu surgimento, a definindo, frente aos desdobramentos de sua dinâmica e constante atividade poética, como uma inquieta e vibrante arquitetura fundada no tempo. 

REFERÊNCIAS

AGAMBEN, Giorgio. Infância e História – Destruição da experiência e origem da história. Tradução de Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005.
CAMPOS, Haroldo de. “Drummond, mestre de coisas”. In: Coleção Fortuna Crítica. Seleção de textos: Sônia Brayner. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1978.
CANDIDO, Antonio. “Inquietudes na poesia de Drummond” In: Vários escritos. São Paulo, Duas Cidades, 1995.
DRUMMOND de Andrade, Carlos. Reunião. Rio de Janeiro, José Olympio, 1974.
MERQUIOR, José Guilherme. “Notas em Função de Boitempo”. In: Coleção Fortuna Crítica. Seleção de textos: Sônia Brayner. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1978.

 Publicado no número 15 da Revista Garrafa da UFRJ.






[1] No meio do caminho
No meio do caminho tinha uma pedra/tinha uma pedra no meio do caminho/tinha uma pedra/no meio do caminho tinha uma pedra.
Nunca me esquecerei desse acontecimento/na vida de minhas retinas tão fatigadas./Nunca me esquecerei que no meio do caminho/tinha uma pedra/tinha uma pedra no meio do caminho/no meio do caminho tinha uma pedra

(DRUMMOND, 1974, p. 12).