quarta-feira, 26 de dezembro de 2007

NOTAS SOBRE O ZARATUSTRA DE NIETZSCHE


Anotações feitas durante o mini-curso "As cosmovisões de Zaratustra: corpo, terra e mundo".


1. Assim Falou Zaratustra, obra poético-filosófica sem precedentes na história do pensamento, foi escrita por Friedrich Nietzsche entre 1883 e 1885. No livro auto-biográfico Ecce Homo, Nietzsche discorreu sobre o pathos trágico que envolveu a feitura da obra, as dificuldades com a saúde, a influência de Lou Salomé, uma jovem russa que Nietzsche amou sem ser correspondido, as mudanças de cidades, tudo isso acontecendo enquanto se punha a escrever a saga de Zaratustra. Uma inspiração mediúnica foi fundamental para a clarividência da obra. Assim descreve o pensador:

"Um êxtase cuja tremenda tensão desata-se por vezes em torrente de lágrimas, no qual o passo involuntariamente ora se precipita, ora se arrasta; um completo estar fora de si, com a claríssima consciência de um sem-número de delicados tremores e calafrios que chegam aos dedos dos pés; um abismo de felicidade, onde o que é mais doloroso e sombrio não atua como contrário, mas como algo condicionado, como uma cor necessária em meio a tal profusão de luz; um instinto para relações rítmicas que abarca imensos espaços de formas - a longitude, a necessidade de um ritmo amplo é quase a medida para a potência da inspiração, uma espécie de compensação para sua pressão e tensão..." (NIETZSCHE, 2004, p. 86).

2. Tudo o que antes Nietzsche escrevera sobre o dionisíaco no seu primeiro livro, O nascimento da Tragédia, em Assim Falou Zaratustra se consumou em sua plenitude e potência.

"Somem-se o espírito e a bondade de todas as grandes almas em uma: todas juntas não seriam capazes de produzir uma fala de Zaratustra. Tremenda é a escala em que ele se move; ele viu mais longe, quis mais longe e pôde mais longe que qualquer homem. Ele contradiz com cada palavra, esse mais afirmativo dos espíritos; nele todos os opostos se fundem numa nova unidade" (NIETZSCHE, 2004, p. 89).

3. Roberto Machado, em Zaratustra – tragédia nietzschiana, relaciona Assim Falou Zaratustra com O nascimento da tragédia a partir do espírito da música. Neste livro, o primeiro escrito por Nietzsche, em 1871, está em jogo a oposição dos conceitos filosóficos, a partir da influência decisiva de Sócrates e Platão, e o conhecimento trágico oriundo do mito e da música. Esse saber, que teve sua força máxima de expressão na tragédia grega e que fora deixado de lado pela tradição filosófica, aparece em Assim falou Zaratustra na medida em que o discurso é proferido num tom musical e não se submete a uma racionalidade causal nem tampouco dialética. A obra de Nietzsche trata das questões fundamentais do homem ao se libertar da "surdez" metafísica contida na retórica do pensamento ocidental. Assume sua musicalidade em consonância com o deus Dioniso, opondo-se ao jogo de conceitos lógico-racionais da chamada “civilização socrática”. Roberto Machado afirmou que em Assim Falou Zaratustra “o conceito é uma palavra enfraquecida pela distância em que se encontra da expressividade musical do trágico e o canto é o que eleva a palavra ao ápice de sua musicalidade, fazendo-a encontrar ou reencontrar a sua força originária” (MACHADO, 2001, ps. 12 e 13). Em carta enviada ao filólogo Erwin Rohde, no ano de 1884, o próprio Nietzsche afirmara: “Meu estilo é uma dança, um jogo de toda sorte de simetrias e um pular por cima e zombar dessas simetrias. Isso até na escolha das vogais” (NIETZSCHE, 2006, p. 29). No Ecce Homo, ao dedicar um capítulo a Assim Falou Zaratustra, Nietzsche relacionou sua escrita com a arte musical: “Talvez se possa ver o Zaratustra inteiro como música; – certamente um renascimento da arte de ouvir esta música era uma precondição para ele” (NIETZSCHE, 2004, p. 82). Roberto Machado escreveu que, “com sua força poético-dramática, Zaratustra é a realização do projeto wagneriano, tal como Nietzsche o havia interpretado” (MACHADO, 2001, p. 23). Nietzsche, antes de romper com o compositor, via na música de Wagner uma maneira de devolver à linguagem sua força mítica ao libertá-la das limitações dos conceitos. O mito, assim como a música, maleável em suas múltiplas possibilidades, tem o poder de se fundir e se confundir na sucessão dos fatos e eventos. A narrativa de Assim Falou Zaratustra, que se apresenta: mítica e musical, em sua dinâmica de sentido, ao ser cantada, é também encenada. O encadeamento de seus atos é bastante tributário da arte teatral. Seus tons, musicais e cênicos, são as sequências de uma ópera. Transitam na rica modulação expressiva das palavras. Zaratustra, o protagonista, é um anunciador e um poeta. Sua fala é cantada. Roberto Machado escreveu que “considerar o Zaratustra canto significa dizer que nele a palavra canta pela própria musicalidade da palavra” (MACHADO, 2001, p. 25). Nietzsche revelara no Ecce Homo que Assim falou Zaratustra possui a linguagem do ditirambo, hino consagrado ao deus Dioniso.

4. O privilégio dessas notas é tomar a obra de Nietzsche em uma perspectiva interdisciplinar, apresentando-a como ela mesma é: obra de arte e pensamento. Como obra de arte, em sua singularidade, Assim falou Zaratustra não se restringe às explicações causais relativas ao tempo e às circunstâncias que envolveram o seu acabamento. Sua permanência em deixar-se aberta a novas interpretações se deve também ao fato de que Nietzsche foi um grande pensador que ousou tocar nas questões essenciais do homem. Martin Heidegger, em A Origem da Obra de Arte, diz que para tornar a obra de arte acessível em si, é preciso “retirar a obra de todas as referências ao que ela própria não é, para a deixar repousar só para si, só e em si mesma” (HEIDEGGER, 2006, p. 26). A obra, através do artista, se liberta para sua própria deviniência. “Justamente, na grande arte, e aqui só se fala dela, o artista posta-se diante da obra como algo indiferente, quase como uma passagem que se auto-aniquila para o surgir da obra, no ato de criar” (HEIDEGGER, 2006, p. 26). Considerando as palavras de Heidegger, qual seria o espaço essencial de Assim falou Zaratustra? Qual o âmbito que ainda se abre depois de tudo o que se disse sobre a obra? Se, como profere Heidegger, na obra, a verdade da obra está em obra, que verdade ou mesmo que verdades a obra de Nietzsche pode revelar?

5. Em Assim Falou Zaratustra, no capítulo que abre o livro, "O prólogo de Zaratustra", Zaratustra, então com mais ou menos 30 anos de idade, isola-se do mundo e passa por um processo de autoconhecimento. Dez anos depois, por uma necessidade imperiosa de anunciar o que pensara nos dias de seu resguardo purificador, decide iniciar o seu ocaso. Ao descer de sua caverna na montanha para dirigir suas palavras aos citadinos, afirma-lhes em praça pública que o homem é algo que deve ser superado e promete-lhes em seguida ensinar a doutrina do super-homem. Assim proclama: “O super-homem é o sentido da terra. Fazei a vossa vontade dizer: ‘Que o super-homem seja o sentido da terra!’ ” (NIETZSCHE, 2006, p. 36). Zaratustra pede aos seus ouvintes que permaneçam fiéis à terra e não acreditem em nada que seja exterior a ela. Em seus discursos, investe contra os pregadores do cristianismo, os que prometem ganhos para além da terra, isto é, as bem-aventuranças no céu após a morte. Chama-os de envenenadores e desprezadores da vida, “dos quais a terra está cansada” (NIETZSCHE, 2006, p. 36). Um cansaço que, numa leitura atualizada, diz muito sobre o colapso que Gaia se vê em pleno século XXI. A terra está cansada das palavras vãs e enganadoras referidas na voz de Zaratustra e do modelo técnico-científico a que está imposta, adoecendo para corresponder aos padrões dominadores que têm no seu autoconsumo um fim em si mesmo. Essa é a delinqüência maior do homem, a de “atribuir mais valor às entranhas do imperscrutável do que ao sentido da terra” (NIETZSCHE, 2006, p. 36). Ir ao encontro do sentido da terra para Zaratustra significa caminhar na direção do super-homem, esse a princípio tão enigmático quanto a própria afirmação do que significa propriamente retomar o sentido da terra. Estaria além de sua destruição progressiva através de processos irreversíveis de relacionamento com o real? O respeito por sua própria dinâmica cósmica de se haver com forças que escapam ao homem? Na obra de Nietzsche, o super-homem surge como a esperança num mundo onde não mais importam valores humanitários como a felicidade, a razão, a virtude, a justiça e a compaixão.

6. Zaratustra conclama a seus ouvintes que “o que há de grande no homem é ser uma ponte, e não meta: o que pode amar-se no homem, é uma transição e um ocaso” (NIETZSCHE, 2006, p. 38). Diz ainda: “Amo aqueles que, para o seu ocaso e sacrifício, não procuram, primeiro, um motivo atrás das estrelas, mas se sacrificam à terra, para que a terra, algum dia, se torne do super-homem” (NIETZSCHE, 2006, p. 38). O motivo atrás das estrelas na fala de Nietzsche é a doutrina platônica das almas e seus desdobramentos neoplatônicos e cristãos. Fiel à terra, Zaratustra exalta aquele que a prepara para o super-homem e nela inventa o melhor modo de construir sua casa. Ama as almas transbordantes e os corações livres. O homem, mesmo se comparado a uma negra nuvem com suas pesadas gotas de chuva, é ainda quem pode liberar o raio iluminador. Zaratustra se diz o prenunciador desse raio que se chama super-homem: “Já é tempo de o homem estabelecer a sua meta. Já é tempo de o homem plantar a semente da sua mais alta esperança. Seu solo ainda é bastante rico para isso. Mas algum dia, esse solo estará pobre e esgotado, e nenhuma árvore poderá mais crescer nele” (NIETZSCHE, 2006, p. 40).

7. Plantar uma semente é metáfora que une terra e homem. Unidos serão férteis, separados permanecerão estéreis. Que é o homem sem o cultivar? Explorar a terra até o seu cansaço ou prepará-la para receber sua doação? O mundo caminha para a sua devastação. O homem se envergonha. Os avisos soam como um ultimato. Será esse o último homem a que Zaratustra se refere? Sem ser levado a sério pelos homens, Zaratustra se recolhe ante à multidão. O curso de seus pensamentos é interrompido por uma série de eventos. Um morto cai a seus pés. Zaratustra elogia sua coragem, pois morreu quem estava vivendo o perigo de seu ofício: o de andar equilibrado numa corda estendida num abismo. Zaratustra, ao ver-se diante do cadáver derrubado por um inimigo fantasiado de palhaço, pressente os limites de sua missão. Quer falar aos vivos e não aos mortos. Sente que suas anunciações devem ser dirigidas apenas àqueles poucos que lhe derem ouvidos e que queiram seguí-lo. Eis que aparecem uma águia com uma serpente enrolada no pescoço. São os animais de Zaratustra que, na sua simbologia, representam valores bastante preciosos para a sua jornada. A águia, sendo o animal mais altivo, e a serpente, o mais prudente. Zaratustra pede aos animais para ser guiado por eles. Quer o impossível: a união da altivez com a prudência. Se a prudência por ora lhe abandonar, roga que essa seja substituída pela loucura. Assim falou Zaratustra: “Onde está o raio que vos lambe com sua língua? Onde, a loucura com que deveríeis ser vacinados? Vede, eu vos ensino o super-homem: porque ele é esse raio e essa loucura!” (NIETZSCHE, 2006, p. 38).

8. Martin Heidegger, entre os anos de 1936 e 1940, deu várias preleções na Universidade de Freiburg tendo como foco o pensamento de Friedrich Nietzsche. Nesses encontros, propôs uma confrontação com a obra nietzscheana. Confrontação para Heidegger tem o caráter de uma crítica autêntica. Significa repensar o que fora pensado anteriormente e perseguir o sentido das palavras proferidas em sua força, o que Heidegger entende como um libertar-se para a possibilidade de uma nova abertura. A Vontade de Poder, cujo título não diz respeito apenas ao projeto de uma obra capital de Nietzsche, significa o essencial de toda a trajetória de seu pensamento. Afirma Heidegger: “Como o nome para o caráter fundamental de todo ente, a expressão ‘vontade de poder’ dá uma resposta à pergunta sobre o que afinal é o ente. Desde sempre essa é a pergunta da filosofia” (HEIDEGGER, 2007, p. 6).

9. Heidegger destacou três pontos fundamentais na construção da obra filosófica de Nietzsche: o eterno retorno, a vontade de poder e a transvaloração de todos os valores. O pensador diz que em Nietzsche há o co-pertencimento intrínseco desses três pontos. A doutrina da vontade de poder se confunde com a doutrina do eterno retorno e essa unidade, historicamente, é o vetor da transvaloração de todos os valores. A vontade de poder surge como resposta à pergunta diretriz da filosofia – o que é o ente – e conjuga-se com a apreensão de Nietzsche a respeito do ser, que é tido no seu pensamento como o devir. Escreveu Nietzsche: “cunhar para o devir o caráter do ser – essa é a mais elevada vontade de poder” (NIETZSCHE apud HEIDEGGER, 2007, ps. 19 e 20).

10. No ensaio "Quem é o Zaratustra de Nietzsche?", a partir de um trecho retirado do capítulo "O convalescente", Heidegger reconhece no personagem um porta-voz da vida, da dor e do círculo. Vida é a vontade de poder com a dor que lhe acompanha. O círculo, em sua forma anelar, por sua vez, configura o eterno retorno do mesmo. Heidegger define numa proposição a essência de Zaratustra como o porta-voz de “que todo real é vontade de poder que, enquanto criadora, padece e suporta a vontade que luta consigo mesma e assim se quer a si mesma no eterno retorno do igual” (HEIDEGGER, 2002, p. 89).

11. A vontade de poder, ao estar ligada à pergunta fundamental sobre o ser, corresponde ao “pensamento mais pesado” da filosofia, a que a ergue e a destrói. O eterno retorno remete à eternidade e ao instante em que se dá a pergunta pelo ser. Escreveu Heidegger:

"Eternidade não como um agora estático, nem tampouco como uma seqüência de agoras que se desenrolam até o infinito, mas como um agora que rebate em si mesmo: o que é isso senão a essência velada do tempo? Pensar o ser, a vontade de poder, como eterno retorno, pensar o pensamento mais pesado da filosofia significa pensar o ser como tempo. Nietzsche pensou esse pensamento" (HEIDEGGER, 2007, p. 20).


12. Como se co-pertencem o super-homem e o eterno retorno do mesmo? Sobre o eterno retorno, o “pensamento mais abissal” de Nietzsche, Heidegger, numa preleção intitulada "Nota sobre o eterno retorno do igual", ressalta que seu entendimento permanece enigmático. O pensador aponta dois caminhos evasivos de compreensão. No primeiro, o eterno retorno seria uma espécie de mística; no segundo, uma representação já há muito difundida na história do pensamento ocidental. O que está a ser pensado a partir do eterno retorno se vela para a metafísica. O pensador relaciona o enigma de Nietzsche com a essência da técnica moderna, atualizando-o em seu destinar-se no tempo ao formular a pergunta: “O que é a essência da máquina moderna senão uma variação do eterno retorno do igual?” (HEIDEGGER, 2002, p. 109).


BIBLIOGRAFIA


HEIDEGGER, Martin. A Origem da Obra de Arte. Tradução de Idalina Azevedo da Silva e Manuel Antônio de Castro. 2006.
--------------------------- Ensaios e Conferências. Traduções de Emmanuel Carneiro Leão, Gilvan Fogel e Márcia Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis: Vozes, 2002.
--------------------------- Nietzsche – Vol. 1. Tradução de Marco Antônio Casanova. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007.
MACHADO, Roberto. Zaratustra – tragédia nietzschiana. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001.
NIETZSCHE, Friedrich. Assim Falou Zaratustra – Um livro para todos e para ninguém. Tradução de Mário da Silva. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2006.
----------------------------- Ecce Homo – Como alguém se torna o que é. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo, Companhia das Letras, 2004.


Publicado no número 13 da Revista Garrafa da UFRJ.

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