terça-feira, 25 de dezembro de 2007

EXPERIÊNCIA E LINGUAGEM NA POESIA DE CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

Giorgio Agamben, em Infância e História: destruição da experiência e origem da história (2005), sugere uma passagem da linguagem da experiência a uma experiência com a linguagem a atuar poeticamente num trânsito vital. A experiência é a pedra de toque no caminho de Carlos Drummond de Andrade, que canta: “O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes, a vida presente” (1974, p. 55). Nossa matéria aqui é ensaiar a experiência e suas relações com a linguagem na obra de Drummond, tomando-a como ponto de partida dois poemas que se oferecem como chave de compreensão de sua poesia a partir de seu obrar: "Consideração do poema" e "Procura da poesia". Em seguida, apresentar três faces distintas da crítica que dialogou com a poesia de Drummond como a linguagem da experiência, a partir de textos de Antonio Candido, José Guilherme Merquior e Haroldo de Campos, acenando para a convivência complementar de suas posições.

A experiência com a linguagem em Drummond parte do eu e nele se compagina. Ao longo da trajetória do poeta, a consciência desse eu se vê em constante transformação diante do mundo e de sua poesia. O jogo drummondiano é justamente um trânsito estabelecido entre a experiência com a linguagem e a linguagem da experiência. O poeta amadurece suas posições por permanecer atado às duas perspectivas. O eu vivido, traduzido em experiência, é o mesmo que se arrisca no verso, experimentando-se como criação essencialmente inaudita da linguagem. Na busca de Drummond, a experiência da vida vivida e o experimentar-se do poema enquanto linguagem se identificam em sua inseparabilidade. Na experiência com a linguagem, o eu que persiste é o mesmo que se deixa abandonar. A subjetividade, a partir da dimensão da linguagem, torna-se encenação na sua obra. Sem a linguagem não haveria sequer a possibilidade dessa pertinência.

A experiência da linguagem na poesia

Passamos agora a ler os dois significativos poemas, férteis para a compreensão do jogo drummondiano com a linguagem: “Consideração do poema”[1] e “Procura da poesia”[2], ambos de A Rosa do Povo (1945).

“Consideração do poema” é a liberdade da palavra. A libertação da poesia pela poesia. O eu grafado é o poeta, o experimentador, que não se vê apenas diante da linguagem, mas com a linguagem. Há um sentimento de solidariedade para com ela e para com os outros poetas. Uma convivência a partir da única experiência possível: a  poesia, quiçá irresistível ao poeta. Assim, a fusão de poesia e vida reside na confissão de uma vida inteira. A experiência se emaranha com a realização humana em seu percurso, habitando o limiar ilimitado de sua travessia poética. Palavras como “matéria” – a palavra, que é matéria de poesia, “viagem” – a travessia do poeta, o seu “ser-no-mundo”, e “mortal” – a condição da finitude do homem, conduzem à sábia serenidade de um acatamento do próprio destino.

O poema começa negando. Nega para em seguida afirmar a carne e o corpo. Corpo que vem de encontro à palavra. A palavra é o corpo. Nasce livre. Vive, matéria, e etérea. Não mais lhe importa a pedra, a sua dureza. O poeta é ele mesmo e o seu coração não é maior que o mundo. Mas nele moram outros poetas, seus irmãos. Sua vida há de ser dividida (ou multiplicada) fraternalmente. A voz do poeta deve ressoar com as vozes dos outros poetas no devir da linguagem. A poesia, como a vida, é reunidora e quer unificar.

A possibilidade do poema prova o sabor da linguagem. O poema não pertence ao poeta a não ser na ilusão precária de sua posse. Nele, e a partir dele, o eu se quer equilibrado, com os pés no chão, iluminando o caminho que o abriga. O claro diante do enigma. Se a poesia ocorre em toda parte, como recusá-la? O destino se vê no poema e a ele se funde. O poeta harmoniza opostos e mostra-se completo nos seus versos. Amadurece.

Em “Procura da poesia” há a recusa do tema. A poesia transcende, vive em toda parte. Emana. A experiência da poesia consiste em penetrar surdamente no reino das palavras. Se acaso o poema emudecer, tornando-se obscuro, que se cultive com paciência a gestação de seu sentido. No silêncio diante do poema reside toda a sua aceitação. Em “Procura da poesia” aparecem as imagens íntimas do recolhimento, como a noite, o sono e o silêncio. Também as de umidade, que remetem ao conforto uterino, a de um rio, que implica movimento, e, por fim, a de transformação. No correr desse rio a metamorfose dinâmica da atividade poética. Metamorfose não só do verso, mas da vida inteira do poeta. Forma e fundo são inseparáveis na linguagem da experiência – a procura – com a experiência da linguagem – a consideração.

A linguagem da experiência na crítica

O diálogo da obra de Carlos Drummond de Andrade com a crítica literária, na voz de importantes ensaístas, como Antonio Candido, José Guilherme Merquior e Haroldo de Campos, nos ajuda a transitar na circularidade que envolve a linguagem da experiência e a experiência com a linguagem. Reconhecendo o sentido poético desses pensadores é que confiamos nossa entrega compreensiva da poesia de Drummond a partir de suas afirmações conceituais.

O ensaio “Inquietudes na poesia de Drummond” (1965), de Antonio Candido, fala de um percurso que se dá entre as inquietudes do poeta e uma alcançada serenidade com a aceitação da morte. As inquietudes, nesse caso, são o material concreto sobre o qual o poeta trabalha.

Na tensa dialética entre voltar-se ao eu e abrir-se ao mundo está a inquietude dos primeiros livros de Drummond demostrada pelo crítico. Ao efetuar o registro do mundo a partir de si e das coisas que o cercam, o poeta revela uma certa incapacidade de aderir-se à vida. O que é dito pelas palavras e o que é feito na prática do cotidiano se mostram nos seus versos. A poesia de Drummond, no início de seu percurso, assume uma forte desconfiança diante das coisas, dando-nos a impressão de um profundo egotismo. Sua personalidade é cindida e exposta a ponto de ser mistificada. Diante do abismo existencial dá-se a recorrência de um descontentamento.

A inquietude, ao atuar diretamente no processo de composição do poeta, irá se resolver dialeticamente na arte dos seus versos. Antonio Candido prevê nessa operação uma síntese. A sensação de estranheza, calcada na incapacidade do eu em harmonizar-se com o mundo gera a imagem da imperfeição. A conseqüência, diz Candido, é o “eu todo retorcido”, em que a torção é “um núcleo emocional a cuja volta se organiza a experiência poética” (CANDIDO, 1995, p. 115). Essa torção, resultante de uma cisão psíquica atuante no poeta, é o resultado expressivo da fusão das experiências de vida e de poesia. Ambas, vida e poesia, orientando-se num mesmo sentido, seguindo e perseguindo o fluxo das palavras, sua matéria mais precisa.

Candido reconhece que há em Drummond uma “meditação constante e por vezes não menos angustiada sobre a poesia” (CANDIDO, 1995, p. 134). A busca do poeta por uma ordem, em face da grande desordem que tanto o atormenta, oscila nas imagens do passado e do presente. O poeta busca o passado como tentativa de ordenar a existência através dos seus laços de sangue. Por isso o reconstrói através do fluxo das memórias familiares, buscando obter no sentido da vida de seus antepassados o seu próprio sentido. Na simultaneidade de passado e futuro, vivificados e compartilhados os sentimentos, o culto à tradição familiar é a tentativa de explicar o inexplicável da existência. Assim, o poeta, peremptoriamente, a partir de suas memórias, pode ordenar o mundo ao esquivar-se de suas imperfeições.

Não apenas a subjetividade do poeta se vê torta. A realidade que se apresenta também. A apreensão do destino individual se enreda inevitavelmente na malha das circunstâncias que o cercam. A injustiça social leva Drummond a tratar dos acontecimentos de um mundo avesso e caduco. Egoísmo, solidão e incomunicabilidade são os reflexos desse estado de coisas. A mísera condição humana é posta em relevo ao serem reportados nos seus versos os dramas cotidianos. O poeta os observa com agudeza. Sua presença é íntegra e contém uma dose de piedade para com os seus semelhantes. Drummond reage ao medo causado pelos ardis do mundo com o signo da esperança. Oferece uma flor aos transeuntes de uma rua movimentada. Crê na redenção do homem, em sua humanidade, e adere ao socialismo, tendo-o como uma perspectiva viável. Em Sentimento do Mundo (1940) e A Rosa do Povo, Drummond realiza uma literatura participante onde os problemas do mundo são por ele testemunhados e questionados. O seu eu, tão sofrido pela incerteza, vê a possibilidade de se redimir na medida em que o outro também se redime. O poeta é solidário. Afirmou Candido:

“O desejo de transformar o mundo, pois, é também uma esperança de promover a modificação do próprio ser, de encontrar uma desculpa para si mesmo. E talvez essa perspectiva de redenção simultânea explique a eficácia da poesia social de Drummond, na medida em que ela é um movimento coeso do ser no mundo, não um assunto, mediante o qual um vê o outro. O seu cantar se torna realmente geral porque é, ao mesmo tempo, profundamente particular” (1995, p. 127). 

Drummond, no curso de sua obra, ao penetrar profundamente na vida autônoma das palavras, pôde dissolver o seu mistificado eu, herdeiro direto do cartesianismo, e suas implicações sociais, na correnteza da linguagem. Seu retorno à fonte originária das palavras é o fluir de sua própria experiência. A vida sendo vivida se funde com a experiência singular do poeta. Na busca mais elementar de seu ofício, é evidente que o poeta possuía nas palavras a sua matéria-prima. No exercício de sua dignidade cotidiana, Drummond clama pela melhor palavra, procedendo sempre no intuito de lhe dar vitalidade e lhe conferir sentido. Como afirmou Antonio Candido, “nas mãos do poeta o lugar comum se torna revelação, graças à palavra na qual se encarnou” (1995, p. 140). Pelo jogo infinito das palavras é que o homem Drummond se orienta. O entendimento do mundo se refaz na medida em que seus versos são engendrados. Sua experiência de vida é tecida na experiência da poesia. Vida e poesia constituem-se enrodilhadas na obra. Unidas, seguem os passos de um mesmo caminho. O ser que permanece é o mesmo que se transforma nos versos. A poesia de Drummond é toda feita desse encontro de ser e linguagem. Candido vê a diretriz de todo esse processo como um diálogo progressivo dos estados psíquicos do poeta com a formalização do verso. Escreveu o crítico:   

“Talvez seja mais importante a transformação das inquietudes, gerando certa serenidade expressa não apenas pelo significado da mensagem, mas pela regularidade crescente da forma, a que o poeta parece tender como fator de equilíbrio na visão do mundo. Entretanto, essa serenidade é também fruto de uma aceitação do nada - , da morte progressiva na existência de cada dia; da dissolução do objeto no ato poético até a negação da própria poesia” (1995, p. 143).

Candido notou que na obra de Drummond a superação da inquietude que se mostra na exacerbada subjetividade e se resolve na forma regular do verso pela compreensão da finitude da vida. O traço existencial, bastante acentuado nos versos de Drummond, nos leva a um outro ensaio, Notas em função de Boitempo (1969), de José Guilherme Merquior. Nesse texto, vemos um poeta eminentemente filosofante. Merquior, ao situar o poeta no contexto de seu aparecimento, observa que Drummond se destacou do quadro modernista ao problematizar seu verso, levando-o a um tom de seriedade inexistente até então entre os poetas do movimento. O Modernismo de 1922, para Merquior, apresentou uma “mescla estilística”, que é um tipo de discurso híbrido, tal qual foi batizado por Erich Auerbach como um

“[...] estilo impuro, porque contrariamente aos preceitos da poética do classicismo, aspira à apresentação de acontecimentos, ou de situações, sérios, trágicos ou problemáticos, mediante o emprego de uma linguagem prosaica ou “vulgar” – por oposição à terminologia aristocrática a que a norma clássica, através da observância da regra de separação hierárquica dos estilos (nobre, médio e vulgar), reservava, em exclusividade, o domínio da tragédia, da épica e da lírica” (1978, p. 123).
   
O Modernismo, ao romper com a tradição literária brasileira calcada no academicismo parnasiano, instaurou uma nova forma de dicção, baseada numa prosa poética do cotidiano em consonância com os impulsos líricos. Drummond, que publicou seu primeiro livro alguns anos após a Semana de Arte Moderna, intensificou a valorização do discurso irônico, tão comum nas fileiras do movimento. No entanto, o poeta se diferenciou dos modernistas não apenas por hipertrofiar a ênfase humorística, mas em acentuar o grau de problematicidade diante dos fatos. A poesia de Drummond transitou paradoxalmente entre uma realidade que nada possuía de nobre e a solene seriedade diante dos acontecimentos. Merquior nos fala de um “plano de inédita complexidade psicológica e de rara densidade de pensamento” (MERQUIOR, 1978, p. 124) alcançada nos seus versos.

Aos poucos, porém, o poeta promoveu a suspensão da “mescla estilística” do Modernismo, mencionada por Merquior. A poesia de Drummond cada vez mais passou a ganhar tons sérios, principalmente a partir de A Rosa do povo. Em Boitempo (1968), porém, os versos de Drummond não só ganham os traços de uma prosa narrativa, já antes ensaiados em Lição de Coisas (1962), como também recuperam o esquecido hibridismo do estilo modernista. A impureza da dicção, formulada por Auerbach, passa novamente a assumir a cena de sua poesia. Ao retomar o meramente cômico das coisas, a afiada e crescente ironia de Drummond é amenizada e, conseqüentemente, o “choque do mundo”, motivo recorrente em sua obra, é minimizado. Merquior chama atenção a um “ludismo do puro ver” contido nos versos de Boitempo.

Em A falta que ama (1962), porém, Drummond retoma com força a linha filosófica deixada para trás em Boitempo. Diz Merquior isso será sem o abandono da mescla estilística que o poeta havia reconquistado anteriormente. O crítico atenta que na retomada da “musa filosófica” realizada nos versos de A falta que ama, a procura ontológica a partir do ego é substituída pela dimensão da vida-surpresa. A concepção vivencial do tempo, antes formulada pelo sujeito da procura, dá lugar a uma temporalidade cósmica. Afirma Merquior que esse movimento do poeta remete a um sentido que vai a um além-da-procura. O tempo do cogito, que nos limites da metafísica ocidental, é encarnado na vontade de poder nietzscheana, finalmente se entrega ao tempo do mundo. Transcender a condição humana, com a renúncia dos limites do eu, permite ao poeta de A falta que ama participar de uma nova ética do conhecer. O estatuto da procura, outrora dominante na obra de Drummond, é convertido “em prospecção do ser sempre inédito, sempre maior que o registro humano” (MERQUIOR, 1978, p. 141). Merquior se refere a esse processo nos versos de Drummond como uma integração órfica, cuja epifania é resultante do naufrágio do espírito crítico centrado no ego. O crítico vê nessa passagem a inserção da poesia de Drummond no centro da problemática assumida pelos grandes pensadores de sua época. Sobre essa transição que sofre a poesia de Drummond, para além da procura auto-centrada, Merquior adverte que seria um erro acreditar que ela signifique uma “marcha para a verdade”, pois “a verdade poética substitui as opções exclusivas da investigação teórica pela justificação mais ampla da variedade contraditória da experiência” (1978, p. 144).

Já Haroldo de Campos, em “Drummond, Mestre de Coisas” (1964), artigo que focaliza o lançamento simultâneo do então inédito livro de poemas Lição de coisas e de uma Antologia Poética (1962) de Drummond, liga Drummond a outro Andrade, o modernista Oswald, no que diz respeito à criação de novas formas poéticas, identificando-os a uma postura de vanguarda. Certos procedimentos programáticos do poeta observados por Campos, como a busca pela síntese numa operação de redução da linguagem, são exemplos dessa aproximação, que se estende, sob esse ponto de vista, aos preceitos orientadores dos concretistas. Campos, quando descreve esse princípio ativo na poesia de Drummond, nos diz um pouco sobre o amadurecimento do poeta atrelado à potência de sua criação:

“Drummond é antes de mais nada [...] um inventor (nele tudo é palavra, já observou Décio Pignatari), e por isso mesmo, há nele essa capacidade rara de transferir mesmo as efemérides mais íntimas para o horizonte do fazer, de celebrá-la então não em “festa”, mas em criação, na “luta corpo-a-corpo com a palavra”, que deve ser, aliás, em poetas como ele, o secreto exercício para a perene juventude do espírito (CAMPOS, 1978, p. 246)”. 

A experiência com a linguagem que realiza Drummond não pertence apenas a uma determinada fase de sua poesia. Campos chama a atenção para uma “concreção” lingüística que percorre toda a obra de Drummond, lembrando que ela se dá desde o consagrado poema No meio do caminho[1], que é do seu livro de estreia, Alguma Poesia (1930).

Campos destacou diversas imagens recorrentes de toda a obra do poeta, ligando-as a uma postura analógica de Drummond na arrumação de seus versos. São essas, para o crítico, as coisas (concretas), que sobressaíram na sua leitura:

“1) o indivíduo; 2) a terra natal; 3) a família; 4) amigos; 5) o choque social; 6) o conhecimento amoroso; 7) a própria poesia; 8) exercícios lúdicos; 9) uma visão, ou tentativa de, da existência, tudo correspondendo, em nomenclatura mais translata, a: 1) um eu todo retorcido; 2) uma província: esta; 3) a família que me dei; 4) cantar de amigos; 5) na praça de convites; 6) amar-amaro; 7) poesia contemplada; 8) uma, duas argolinhas; 9) tentativa de exploração e de interpretação do estar-no-mundo” (1978, p. 252).  

O crítico afirmou que, dessas imagens que catalogou, “o total gera, para quem se dispuser a meditá-lo, um ideograma crítico da obra de Carlos Drummond de Andrade” (CAMPOS, 1978, p. 252).

Drummond opera uma poética bifásica que reside na oscilação entre uma poesia de reflexão crítica e uma poesia de participação, chamadas por Campos de poesia-poesia e poesia-para, respectivamente. Na poesia-poesia, a experiência de Drummond com a linguagem que se precipita criticamente, centrada na construção do eu, tem a certeza de um pertencimento social como aliada. Drummond não rejeita o “pesadelo da história” e prefere corajosamente ir com as palavras ao seu encontro. Assim, o sentimento do mundo se enreda com as escolhas formais do poeta. A poesia-para, poesia de participação, tanto é a que se insere no contexto pragmático do uso do signo como experimento de linguagem quanto a que se move no plano existencial e adquire o sentido de um co-pertencimento indivisível com a palavra.

A visão progressista no sentido de uma dialética, mostrada por Antonio Candido, passa a idéia de uma formação poética no seu curso de desenvolvimento histórico. A experiência com a linguagem é submetida ao operar de uma linguagem da experiência retorcida e incompleta, onde o fundo psicológico e o envolvimento social do poeta atuam como impulsionadores vitais. Na trajetória de Drummond, após embates heróicos consigo mesmo e com as palavras, dá-se o alcance de uma serenidade que, entre outros desdobramentos, lhe devolve o gosto esquecido pelas formas tradicionais. A visão panorâmica de Candido sobre a obra de Drummond, sob a perspectiva de seu desenvolvimento, admite um programa bem definido que gira em torno da compreensão do eu e do mundo ao redor por parte do poeta, no qual a resolução formal pode ser entendida como a conseqüência de um determinado estado de espírito do poeta.

José Guilherme Merquior, a partir do ponto de vista da linguagem em desdobramentos mesclados, que vão do cultivo da doxa ao da epistéme, capta a vigência de uma “musa filosófica” na poesia de Drummond. A oscilação de sua presença ou de sua ausência serve como um indicador das intenções do poeta no percurso de suas realizações.

Haroldo de Campos, por sua vez, se move enfaticamente nos horizontes da estrutura e da forma. A opção pela formalização como esquema organizante da linguagem veicula o poeta a um sentido programático e pragmático. Deste modo, o eu permanece centrado como o sujeito da experiência com a linguagem, assumindo o controle absoluto de seus experimentos estruturantes.

Notamos, ao transitar nas diferentes posições críticas frente à obra de Drummond, que a experiência com a linguagem vigora no jogo pendular entre o experimento subjetivo e a experienciação do humano revelado na voz do poeta. A experiência com a linguagem é, desse modo, fusionada à linguagem da experiência, constituindo-se no arqué, no princípio atuante, de sua poesia. A indistinção da experiência com a linguagem com a linguagem da experiência sempre pautou a obra de Drummond desde o seu surgimento, a definindo, frente aos desdobramentos de sua dinâmica e constante atividade poética, como uma inquieta e vibrante arquitetura fundada no tempo. 

REFERÊNCIAS

AGAMBEN, Giorgio. Infância e História – Destruição da experiência e origem da história. Tradução de Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005.
CAMPOS, Haroldo de. “Drummond, mestre de coisas”. In: Coleção Fortuna Crítica. Seleção de textos: Sônia Brayner. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1978.
CANDIDO, Antonio. “Inquietudes na poesia de Drummond” In: Vários escritos. São Paulo, Duas Cidades, 1995.
DRUMMOND de Andrade, Carlos. Reunião. Rio de Janeiro, José Olympio, 1974.
MERQUIOR, José Guilherme. “Notas em Função de Boitempo”. In: Coleção Fortuna Crítica. Seleção de textos: Sônia Brayner. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1978.

 Publicado no número 15 da Revista Garrafa da UFRJ.






[1] No meio do caminho
No meio do caminho tinha uma pedra/tinha uma pedra no meio do caminho/tinha uma pedra/no meio do caminho tinha uma pedra.
Nunca me esquecerei desse acontecimento/na vida de minhas retinas tão fatigadas./Nunca me esquecerei que no meio do caminho/tinha uma pedra/tinha uma pedra no meio do caminho/no meio do caminho tinha uma pedra

(DRUMMOND, 1974, p. 12).

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