Giorgio Agamben,
em Infância e História: destruição da experiência e origem da história (2005),
sugere uma passagem da linguagem da experiência a uma experiência com a
linguagem a atuar poeticamente num trânsito vital. A experiência é a pedra de
toque no caminho de Carlos Drummond de Andrade, que canta: “O tempo é a minha
matéria, o tempo presente, os homens presentes, a vida presente” (1974, p. 55).
Nossa matéria aqui é ensaiar a experiência e suas relações com a linguagem na
obra de Drummond, tomando-a como ponto de partida dois poemas que se oferecem
como chave de compreensão de sua poesia a partir de seu obrar:
"Consideração do poema" e "Procura da poesia". Em seguida,
apresentar três faces distintas da crítica que dialogou com a poesia de
Drummond como a linguagem da experiência, a partir de textos de Antonio Candido,
José Guilherme Merquior e Haroldo de Campos, acenando para a convivência
complementar de suas posições.
A experiência
com a linguagem em Drummond parte do eu e nele se compagina. Ao longo
da trajetória do poeta, a consciência desse eu se vê em constante
transformação diante do mundo e de sua poesia. O jogo drummondiano é
justamente um trânsito estabelecido entre a experiência com a linguagem e a
linguagem da experiência. O poeta amadurece suas posições por permanecer atado
às duas perspectivas. O eu vivido, traduzido em experiência, é o
mesmo que se arrisca no verso, experimentando-se como criação essencialmente
inaudita da linguagem. Na busca de Drummond, a experiência da vida vivida e o
experimentar-se do poema enquanto linguagem se identificam em sua
inseparabilidade. Na experiência com a linguagem, o eu que persiste é
o mesmo que se deixa abandonar. A subjetividade, a partir da dimensão da
linguagem, torna-se encenação na sua obra. Sem a linguagem não haveria sequer a
possibilidade dessa pertinência.
A experiência da
linguagem na poesia
Passamos agora a
ler os dois significativos poemas, férteis para a compreensão do jogo
drummondiano com a linguagem: “Consideração do poema”[1] e
“Procura da poesia”[2], ambos de A Rosa do Povo (1945).
“Consideração
do poema” é a liberdade da palavra. A libertação da poesia pela poesia.
O eu grafado é o poeta, o experimentador, que não se vê apenas diante
da linguagem, mas com a linguagem. Há um sentimento de solidariedade para com
ela e para com os outros poetas. Uma convivência a partir da única experiência
possível: a poesia, quiçá irresistível ao poeta. Assim, a fusão de poesia
e vida reside na confissão de uma vida inteira. A experiência se emaranha com a
realização humana em seu percurso, habitando o limiar ilimitado de sua
travessia poética. Palavras como “matéria” – a palavra, que é matéria de
poesia, “viagem” – a travessia do poeta, o seu “ser-no-mundo”, e “mortal” – a
condição da finitude do homem, conduzem à sábia serenidade de um acatamento do
próprio destino.
O
poema começa negando. Nega para em seguida afirmar a carne e o corpo. Corpo que
vem de encontro à palavra. A palavra é o corpo. Nasce livre. Vive, matéria, e
etérea. Não mais lhe importa a pedra, a sua dureza. O poeta é ele mesmo e o seu
coração não é maior que o mundo. Mas nele moram outros poetas, seus irmãos. Sua
vida há de ser dividida (ou multiplicada) fraternalmente. A voz do poeta deve
ressoar com as vozes dos outros poetas no devir da linguagem. A poesia, como a
vida, é reunidora e quer unificar.
A
possibilidade do poema prova o sabor da linguagem. O poema não pertence ao
poeta a não ser na ilusão precária de sua posse. Nele, e a partir dele, o eu se
quer equilibrado, com os pés no chão, iluminando o caminho que o abriga. O
claro diante do enigma. Se a poesia ocorre em toda parte, como
recusá-la? O destino se vê no poema e a ele se funde. O
poeta harmoniza opostos e mostra-se completo nos seus
versos. Amadurece.
Em
“Procura da poesia” há a recusa do tema. A poesia transcende, vive em toda
parte. Emana. A experiência da poesia consiste em penetrar surdamente no reino
das palavras. Se acaso o poema emudecer, tornando-se obscuro, que se cultive
com paciência a gestação de seu sentido. No silêncio diante do poema reside
toda a sua aceitação. Em “Procura da poesia” aparecem as imagens íntimas do
recolhimento, como a noite, o sono e o silêncio. Também as de umidade, que
remetem ao conforto uterino, a de um rio, que implica movimento, e, por fim, a
de transformação. No correr desse rio a metamorfose dinâmica da atividade
poética. Metamorfose não só do verso, mas da vida inteira do poeta. Forma e
fundo são inseparáveis na linguagem da experiência – a procura – com a
experiência da linguagem – a consideração.
A
linguagem da experiência na crítica
O
diálogo da obra de Carlos Drummond de Andrade com a crítica literária, na voz
de importantes ensaístas, como Antonio Candido, José Guilherme Merquior e
Haroldo de Campos, nos ajuda a transitar na circularidade que envolve a
linguagem da experiência e a experiência com a linguagem. Reconhecendo o
sentido poético desses pensadores é que confiamos nossa entrega compreensiva da
poesia de Drummond a partir de suas afirmações conceituais.
O
ensaio “Inquietudes na poesia de Drummond” (1965), de Antonio Candido,
fala de um percurso que se dá entre as inquietudes do poeta e uma alcançada
serenidade com a aceitação da morte. As inquietudes, nesse caso, são o material
concreto sobre o qual o poeta trabalha.
Na
tensa dialética entre voltar-se ao eu e abrir-se ao mundo está a
inquietude dos primeiros livros de Drummond demostrada pelo crítico. Ao efetuar
o registro do mundo a partir de si e das coisas que o cercam, o poeta revela
uma certa incapacidade de aderir-se à vida. O que é dito pelas palavras e o que
é feito na prática do cotidiano se mostram nos seus versos. A poesia de
Drummond, no início de seu percurso, assume uma forte desconfiança diante das
coisas, dando-nos a impressão de um profundo egotismo. Sua personalidade é
cindida e exposta a ponto de ser mistificada. Diante do abismo existencial
dá-se a recorrência de um descontentamento.
A
inquietude, ao atuar diretamente no processo de composição do poeta, irá se
resolver dialeticamente na arte dos seus versos. Antonio Candido prevê nessa
operação uma síntese. A sensação de estranheza, calcada na incapacidade
do eu em harmonizar-se com o mundo gera a imagem da imperfeição. A
conseqüência, diz Candido, é o “eu todo retorcido”, em que a torção é “um
núcleo emocional a cuja volta se organiza a experiência poética” (CANDIDO,
1995, p. 115). Essa torção, resultante de uma cisão psíquica atuante no poeta,
é o resultado expressivo da fusão das experiências de vida e de poesia. Ambas,
vida e poesia, orientando-se num mesmo sentido, seguindo e perseguindo o fluxo
das palavras, sua matéria mais precisa.
Candido
reconhece que há em Drummond uma “meditação constante e por vezes não menos
angustiada sobre a poesia” (CANDIDO, 1995, p. 134). A busca do poeta por uma
ordem, em face da grande desordem que tanto o atormenta, oscila nas imagens do
passado e do presente. O poeta busca o passado como tentativa de ordenar a
existência através dos seus laços de sangue. Por isso o reconstrói através do
fluxo das memórias familiares, buscando obter no sentido da vida de seus
antepassados o seu próprio sentido. Na simultaneidade de passado e futuro,
vivificados e compartilhados os sentimentos, o culto à tradição familiar é a
tentativa de explicar o inexplicável da existência. Assim, o poeta,
peremptoriamente, a partir de suas memórias, pode ordenar o mundo ao
esquivar-se de suas imperfeições.
Não
apenas a subjetividade do poeta se vê torta. A realidade que se apresenta
também. A apreensão do destino individual se enreda inevitavelmente na malha
das circunstâncias que o cercam. A injustiça social leva Drummond a tratar dos
acontecimentos de um mundo avesso e caduco. Egoísmo, solidão e
incomunicabilidade são os reflexos desse estado de coisas. A mísera condição
humana é posta em relevo ao serem reportados nos seus versos os dramas
cotidianos. O poeta os observa com agudeza. Sua presença é íntegra e contém uma
dose de piedade para com os seus semelhantes. Drummond reage ao medo causado
pelos ardis do mundo com o signo da esperança. Oferece uma flor aos transeuntes
de uma rua movimentada. Crê na redenção do homem, em sua humanidade, e adere ao
socialismo, tendo-o como uma perspectiva viável. Em Sentimento do Mundo (1940)
e A Rosa do Povo, Drummond realiza uma literatura participante onde os
problemas do mundo são por ele testemunhados e questionados. O seu eu, tão
sofrido pela incerteza, vê a possibilidade de se redimir na medida em que o
outro também se redime. O poeta é solidário. Afirmou Candido:
“O
desejo de transformar o mundo, pois, é também uma esperança de promover a
modificação do próprio ser, de encontrar uma desculpa para si mesmo. E talvez
essa perspectiva de redenção simultânea explique a eficácia da poesia social de
Drummond, na medida em que ela é um movimento coeso do ser no mundo, não um
assunto, mediante o qual um vê o outro. O seu cantar se torna realmente geral
porque é, ao mesmo tempo, profundamente particular” (1995, p. 127).
Drummond,
no curso de sua obra, ao penetrar profundamente na vida autônoma das palavras,
pôde dissolver o seu mistificado eu, herdeiro direto do cartesianismo, e
suas implicações sociais, na correnteza da linguagem. Seu retorno à fonte
originária das palavras é o fluir de sua própria experiência. A vida sendo
vivida se funde com a experiência singular do poeta. Na busca mais elementar de
seu ofício, é evidente que o poeta possuía nas palavras a sua matéria-prima. No
exercício de sua dignidade cotidiana, Drummond clama pela melhor palavra,
procedendo sempre no intuito de lhe dar vitalidade e lhe conferir sentido. Como
afirmou Antonio Candido, “nas mãos do poeta o lugar comum se torna revelação,
graças à palavra na qual se encarnou” (1995, p. 140). Pelo jogo infinito das
palavras é que o homem Drummond se orienta. O entendimento do mundo se refaz na
medida em que seus versos são engendrados. Sua experiência de vida é tecida na
experiência da poesia. Vida e poesia constituem-se enrodilhadas na obra.
Unidas, seguem os passos de um mesmo caminho. O ser que permanece é o mesmo que
se transforma nos versos. A poesia de Drummond é toda feita desse encontro de
ser e linguagem. Candido vê a diretriz de todo esse processo como um diálogo
progressivo dos estados psíquicos do poeta com a formalização do verso.
Escreveu o crítico:
“Talvez
seja mais importante a transformação das inquietudes, gerando certa serenidade
expressa não apenas pelo significado da mensagem, mas pela regularidade
crescente da forma, a que o poeta parece tender como fator de equilíbrio na
visão do mundo. Entretanto, essa serenidade é também fruto de uma aceitação do
nada - , da morte progressiva na existência de cada dia; da dissolução do
objeto no ato poético até a negação da própria poesia” (1995, p. 143).
Candido
notou que na obra de Drummond a superação da inquietude que se mostra na
exacerbada subjetividade e se resolve na forma regular do verso pela
compreensão da finitude da vida. O traço existencial, bastante acentuado nos
versos de Drummond, nos leva a um outro ensaio, Notas em função de
Boitempo (1969), de José Guilherme Merquior. Nesse texto, vemos um poeta
eminentemente filosofante. Merquior, ao situar o poeta no contexto de seu
aparecimento, observa que Drummond se destacou do quadro modernista ao
problematizar seu verso, levando-o a um tom de seriedade inexistente até então
entre os poetas do movimento. O Modernismo de 1922, para Merquior, apresentou
uma “mescla estilística”, que é um tipo de discurso híbrido, tal qual foi
batizado por Erich Auerbach como um
“[...]
estilo impuro, porque contrariamente aos preceitos da poética do classicismo,
aspira à apresentação de acontecimentos, ou de situações, sérios, trágicos ou
problemáticos, mediante o emprego de uma linguagem prosaica ou “vulgar” – por
oposição à terminologia aristocrática a que a norma clássica, através da
observância da regra de separação hierárquica dos estilos (nobre, médio e
vulgar), reservava, em exclusividade, o domínio da tragédia, da épica e da
lírica” (1978, p. 123).
O
Modernismo, ao romper com a tradição literária brasileira calcada no
academicismo parnasiano, instaurou uma nova forma de dicção, baseada numa prosa
poética do cotidiano em consonância com os impulsos líricos. Drummond, que
publicou seu primeiro livro alguns anos após a Semana de Arte Moderna,
intensificou a valorização do discurso irônico, tão comum nas fileiras do
movimento. No entanto, o poeta se diferenciou dos modernistas não apenas por
hipertrofiar a ênfase humorística, mas em acentuar o grau de problematicidade
diante dos fatos. A poesia de Drummond transitou paradoxalmente entre uma
realidade que nada possuía de nobre e a solene seriedade diante dos
acontecimentos. Merquior nos fala de um “plano de inédita complexidade
psicológica e de rara densidade de pensamento” (MERQUIOR, 1978, p. 124)
alcançada nos seus versos.
Aos
poucos, porém, o poeta promoveu a suspensão da “mescla estilística” do
Modernismo, mencionada por Merquior. A poesia de Drummond cada vez mais passou
a ganhar tons sérios, principalmente a partir de A Rosa do povo. Em Boitempo
(1968), porém, os versos de Drummond não só ganham os traços de uma prosa
narrativa, já antes ensaiados em Lição de Coisas (1962), como também recuperam o
esquecido hibridismo do estilo modernista. A impureza da dicção, formulada por
Auerbach, passa novamente a assumir a cena de sua poesia. Ao retomar o
meramente cômico das coisas, a afiada e crescente ironia de Drummond é
amenizada e, conseqüentemente, o “choque do mundo”, motivo recorrente em sua
obra, é minimizado. Merquior chama atenção a um “ludismo do puro ver” contido
nos versos de Boitempo.
Em
A falta que ama (1962), porém, Drummond retoma com força a linha filosófica
deixada para trás em Boitempo. Diz Merquior isso será sem o abandono da mescla
estilística que o poeta havia reconquistado anteriormente. O crítico atenta que
na retomada da “musa filosófica” realizada nos versos de A falta que ama, a
procura ontológica a partir do ego é substituída pela dimensão da
vida-surpresa. A concepção vivencial do tempo, antes formulada pelo sujeito da
procura, dá lugar a uma temporalidade cósmica. Afirma Merquior que esse
movimento do poeta remete a um sentido que vai a um além-da-procura. O tempo do
cogito, que nos limites da metafísica ocidental, é encarnado na vontade de
poder nietzscheana, finalmente se entrega ao tempo do mundo. Transcender a
condição humana, com a renúncia dos limites do eu, permite ao poeta de A falta
que ama participar de uma nova ética do conhecer. O estatuto da procura,
outrora dominante na obra de Drummond, é convertido “em prospecção do ser
sempre inédito, sempre maior que o registro humano” (MERQUIOR, 1978, p. 141).
Merquior se refere a esse processo nos versos de Drummond como uma integração
órfica, cuja epifania é resultante do naufrágio do espírito crítico centrado no
ego. O crítico vê nessa passagem a inserção da poesia de Drummond no centro da
problemática assumida pelos grandes pensadores de sua época. Sobre essa
transição que sofre a poesia de Drummond, para além da procura auto-centrada,
Merquior adverte que seria um erro acreditar que ela signifique uma “marcha
para a verdade”, pois “a verdade poética substitui as opções exclusivas da
investigação teórica pela justificação mais ampla da variedade contraditória da
experiência” (1978, p. 144).
Já
Haroldo de Campos, em “Drummond, Mestre de Coisas” (1964), artigo que
focaliza o lançamento simultâneo do então inédito livro de poemas Lição de
coisas e de uma Antologia Poética (1962) de Drummond, liga
Drummond a outro Andrade, o modernista Oswald, no que diz respeito à criação de
novas formas poéticas, identificando-os a uma postura de vanguarda. Certos
procedimentos programáticos do poeta observados por Campos, como a busca pela síntese
numa operação de redução da linguagem, são exemplos dessa aproximação, que se
estende, sob esse ponto de vista, aos preceitos orientadores dos concretistas.
Campos, quando descreve esse princípio ativo na poesia de Drummond, nos diz um
pouco sobre o amadurecimento do poeta atrelado à potência de sua criação:
“Drummond
é antes de mais nada [...] um inventor (nele tudo é palavra, já observou Décio
Pignatari), e por isso mesmo, há nele essa capacidade rara de transferir mesmo
as efemérides mais íntimas para o horizonte do fazer, de celebrá-la então não
em “festa”, mas em criação, na “luta corpo-a-corpo com a palavra”, que deve
ser, aliás, em poetas como ele, o secreto exercício para a perene juventude do
espírito (CAMPOS, 1978, p. 246)”.
A
experiência com a linguagem que realiza Drummond não pertence apenas a uma
determinada fase de sua poesia. Campos chama a atenção para uma “concreção”
lingüística que percorre toda a obra de Drummond, lembrando que ela se dá desde
o consagrado poema No meio do caminho[1], que é do seu
livro de estreia, Alguma Poesia (1930).
Campos destacou
diversas imagens recorrentes de toda a obra do poeta, ligando-as a uma postura
analógica de Drummond na arrumação de seus versos. São essas, para o crítico,
as coisas (concretas), que sobressaíram na sua leitura:
“1) o indivíduo; 2) a terra natal; 3) a família; 4) amigos; 5) o choque social; 6) o conhecimento amoroso; 7) a própria poesia; 8) exercícios lúdicos; 9) uma visão, ou tentativa de, da existência, tudo correspondendo, em nomenclatura mais translata, a: 1) um eu todo retorcido; 2) uma província: esta; 3) a família que me dei; 4) cantar de amigos; 5) na praça de convites; 6) amar-amaro; 7) poesia contemplada; 8) uma, duas argolinhas; 9) tentativa de exploração e de interpretação do estar-no-mundo” (1978, p. 252).
O crítico
afirmou que, dessas imagens que catalogou, “o total gera, para quem se dispuser
a meditá-lo, um ideograma crítico da obra de Carlos Drummond de Andrade”
(CAMPOS, 1978, p. 252).
Drummond opera
uma poética bifásica que reside na oscilação entre uma poesia de reflexão
crítica e uma poesia de participação, chamadas por Campos de poesia-poesia e poesia-para,
respectivamente. Na poesia-poesia, a experiência de Drummond com a
linguagem que se precipita criticamente, centrada na construção do eu, tem
a certeza de um pertencimento social como aliada. Drummond não rejeita o
“pesadelo da história” e prefere corajosamente ir com as palavras ao seu
encontro. Assim, o sentimento do mundo se enreda com as escolhas formais do
poeta. A poesia-para, poesia de participação, tanto é a que se insere no
contexto pragmático do uso do signo como experimento de linguagem quanto a que
se move no plano existencial e adquire o sentido de um co-pertencimento
indivisível com a palavra.
A visão
progressista no sentido de uma dialética, mostrada por Antonio Candido, passa a
idéia de uma formação poética no seu curso de desenvolvimento histórico. A
experiência com a linguagem é submetida ao operar de uma linguagem da experiência
retorcida e incompleta, onde o fundo psicológico e o envolvimento social do
poeta atuam como impulsionadores vitais. Na trajetória de Drummond, após
embates heróicos consigo mesmo e com as palavras, dá-se o alcance de uma
serenidade que, entre outros desdobramentos, lhe devolve o gosto esquecido
pelas formas tradicionais. A visão panorâmica de Candido sobre a obra de
Drummond, sob a perspectiva de seu desenvolvimento, admite um programa bem
definido que gira em torno da compreensão do eu e do mundo ao redor
por parte do poeta, no qual a resolução formal pode ser entendida como a
conseqüência de um determinado estado de espírito do poeta.
José Guilherme
Merquior, a partir do ponto de vista da linguagem em desdobramentos mesclados,
que vão do cultivo da doxa ao da epistéme, capta a vigência de
uma “musa filosófica” na poesia de Drummond. A oscilação de sua presença ou de
sua ausência serve como um indicador das intenções do poeta no percurso de suas
realizações.
Haroldo de
Campos, por sua vez, se move enfaticamente nos horizontes da estrutura e da
forma. A opção pela formalização como esquema organizante da linguagem veicula
o poeta a um sentido programático e pragmático. Deste modo, o eu permanece
centrado como o sujeito da experiência com a linguagem, assumindo o controle
absoluto de seus experimentos estruturantes.
Notamos, ao
transitar nas diferentes posições críticas frente à obra de Drummond, que a
experiência com a linguagem vigora no jogo pendular entre o experimento
subjetivo e a experienciação do humano revelado na voz do poeta. A experiência
com a linguagem é, desse modo, fusionada à linguagem da experiência,
constituindo-se no arqué, no princípio atuante, de sua poesia. A
indistinção da experiência com a linguagem com a linguagem da experiência
sempre pautou a obra de Drummond desde o seu surgimento, a definindo, frente
aos desdobramentos de sua dinâmica e constante atividade poética, como uma
inquieta e vibrante arquitetura fundada no tempo.
REFERÊNCIAS
AGAMBEN,
Giorgio. Infância e História – Destruição da experiência e origem da
história. Tradução de Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005.
CAMPOS, Haroldo
de. “Drummond, mestre de coisas”. In: Coleção Fortuna Crítica. Seleção
de textos: Sônia Brayner. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1978.
CANDIDO,
Antonio. “Inquietudes na poesia de Drummond” In: Vários escritos. São Paulo, Duas Cidades, 1995.
DRUMMOND de
Andrade, Carlos. Reunião. Rio de Janeiro, José Olympio, 1974.
MERQUIOR, José
Guilherme. “Notas em Função de Boitempo”. In: Coleção Fortuna Crítica. Seleção
de textos: Sônia Brayner. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1978.
Publicado
no número 15 da Revista Garrafa da UFRJ.
[1] No meio do
caminho
No meio do
caminho tinha uma pedra/tinha uma pedra no meio do caminho/tinha uma pedra/no
meio do caminho tinha uma pedra.
Nunca me
esquecerei desse acontecimento/na vida de minhas retinas tão fatigadas./Nunca
me esquecerei que no meio do caminho/tinha uma pedra/tinha uma pedra no meio do
caminho/no meio do caminho tinha uma pedra
(DRUMMOND, 1974,
p. 12).
Nenhum comentário:
Postar um comentário